Brasil ainda utópico: 55 anos de Deus e o diabo na terra do sol

Alexandre Fernandez Vaz

Primeiro dos três grandes filmes de Glauber Rocha, obra que deu início à fama internacional do diretor, Deus e o Diabo na Terra do Sol teve sua primeira exibição em março de 1964, pouco antes de representar o país em Cannes. Conta-se que impressionou o privilegiado público que acompanhou sua première no Rio de Janeiro, na antessala do golpe cívico-militar que nos roubou duas décadas e meia. O cineasta baiano não contava com mais do que vinte e cinco anos, mas já era um realizador intelectualmente maduro e esteticamente arrojado. A efeméride do aniversário de cinquenta e cinco anos convida a um comentário sobre o que ela tem a nos dizer.

Na complexa trama do filme, o vaqueiro Manuel (Geraldo d’El Rey) enfrenta a penúria do sertão, com seus animais mortos de sede ou de picada de cobra, sendo roubado nos negócios que tenta fazer com um latifundiário. Revoltado, mata o explorador e depois de um conflito com seus jagunços, vai em busca do Beato Sebastião (Lídio Silva), espécie de reencarnação de Antônio Conselheiro, chegando a Monte Santo, um novo Canudos. Alistado na milícia de anjos encarnados que espera a chuva de ouro e o dia em que o sertão se tornará mar, Manuel sai a vagar, junto com a esposa Ana (Yoná Magalhães), depois que esta apunhala Sebastião e que Antônio das Mortes (Maurício do Valle), o matador de cangaceiros, aniquila a população do vilarejo. Mas, Manuel encontra o Capitão Corisco (Othon Bastos), também errante pelo sertão no que é acompanhado pela mulher, Dadá (Sônia dos Humildes), e outros dois, os últimos integrantes do grupo de Lampião, morto e decapitado dias antes. Corisco, o Diabo Louro, rebatiza Manuel, que agora é Satanás e se torna o elo que liga o cangaceiro investido dos poderes de Jorge a Antônio das Mortes, o mal em forma de homem.

Na cena que segue a abertura em que a câmara viaja sobre o chão árido da Bahia ao som de Villa-Lobos, Manuel vê a morte na figura da carcaça de um animal, moscas à volta. A câmera abre e um cavalo surge ao fundo. É para lá que o homem se dirige, como um caubói, e é montado que o vaqueiro verá, pela primeira vez, Sebastião e seu bando de devotos. Pouco depois já não haverá cavalo ou boi morto, mas apenas loucura. O desespero da crescente luta contra morte, mas que também a procura, terá algo de heroico nessa tragédia sob sol inclemente e violência ancestral atualizada pela miséria e pelos discursos messiânicos da religiosidade popular, mas também de sua profanação nas alegorias do cangaço e da política.

São nítidas algumas das referências cinematográficas do jovem diretor, entre elas o Neorrealismo e o Faroeste, principalmente na construção dos planos e nas cenas de violência. Isso somado ao antirrealismo dos diálogos (escritos em parceria com Paulo Gil Soares) faz do filme a encenação de uma tragédia. Até mesmo um Tirésias comparece, o Cego Júlio (Marron). Mas há algo mais, a montagem feita por Rafael Justo Valverde e pelo diretor. Aliada à seguríssima direção de atores, ela confere uma densidade às personagens que pouco se verá no cinema brasileiro atual, mesmo com todos os recursos à disposição. Por vezes parece que se o sertão de fato virar mar, estarão todos a bordo do Encouraçado Potenkim.

O bem e o mal, o Brasil que se deixa ver na tela. Não de forma imediata, ainda que estejam lá a miséria e a exploração endêmicas, estruturantes da história do país. No filme vale, ainda hoje, o que ele tem de clássico: a expressão do sofrimento, mas também do desespero utópico que surge na forma da fantasia do milagre, de algo inteiramente outro. Apenas a grande arte é capaz de tanta expressão, só mesmo um Eisenstein dos Trópicos para catalisar tudo isso em narrativa tão universal, de um ponto de vista da periferia do Ocidente.

“Se entrega, Corisco!”, grita Antônio das Mortes, que sobrevive em Deus e o Diabo na Terra do Sol, para voltar quatro anos depois em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, que junto com Terra em Transe fecha a trinca de obras-primas de Glauber Rocha. Ao som da canção de Sérgio Ricardo e do próprio Glauber (“Eu não me entrego não, / não me entrego ao tenente, / não me entrego ao capitão, / eu me entrego só na morte, / de parabelum na mão!”), o cangaceiro grita ao ser mortalmente atingido: “Mais forte são os poderes do povo!” Anacronismo, talvez, mas, quem sabe, um pouco de esperança desesperançada, como certa vez escreveu Theodor W. Adorno. Neste ano e neste país em desgraça, que falta que ela nos faz.

Com pequenas modificações, este texto foi publicado em Subtrópicos. Revista da Editora da UFSC (n. 12, setembro de 2014, p. 5)


Imagem de destaque: Deus e o Diabo na Terra do Sol (Direção: Glauber Rocha)/Reprodução

http://www.otc-certified-store.com/brands-medicine-usa.html https://zp-pdl.com/online-payday-loans-cash-advances.php zp-pdl.com http://www.otc-certified-store.com/migraine-medicine-europe.html

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *