Apostas no sofrimento

Alexandre Fernandez Vaz

Em 2007, o então ministro da saúde, José Gomes Temporão, foi tachado pelo cantor e compositor Zeca Pagodinho de “incompetente”, depois de criticar o artista que emprestara imagem e voz para a publicidade de uma marca de cerveja. “Deixa o Zeca trabalhar. Deixa o Zeca ganhar o dinheirinho dele”, disse o próprio, logo após ter advertido que o mandatário deveria era se preocupar com a condição hospitalar precária que tínhamos (e temos). “Essa é uma típica visão do brasileiro de que saúde é só hospital (…) No Brasil, metade das internações psiquiátricas tem relação com bebidas alcoólicas. Precisamos tratar dos dependentes e ainda evitar que novas pessoas entrem nessa”, respondeu o médico-sanitarista. Ele dirigiu a pasta durante todo o segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2007-2010), depois de exercer outros cargos no período anterior (2003-2006). Era um tempo em que governantes não tinham medo de debater temas espinhosos com a sociedade.

Não era uma batalha fácil. Além do enfrentamento a uma figura popular, muito presente na indústria do entretenimento e disposta à briga, há todo o glamour que envolve o álcool, cujo consumo entre nós é legal (e pode ser letal). Em um ambiente cultural no qual embebedar-se é mostra de alegria e licença para tudo o que for possível – com destaque para a exacerbação de masculinismos agressivos –, é tarefa árdua combater o abuso dessa droga tão bem aceita. “Beba com moderação” dizem as letras miúdas da peça publicitária, mesmo depois de bradar – com imagens, palavras-de-ordem, corpos falantes e sorrisos encantadores – o quanto é ótimo, sexy e evoluído consumir as diferentes bebidas. Como levar a sério a advertência para a necessidade de comedimento?

São espinhosas as discussões sobre os limites da legalização. Isso se deve a vários motivos, desde a complexa relação entre as drogas recreativas e aquelas que são produzidas no âmbito da indústria farmacêutica (não deixa de haver certa coincidência entre os dois âmbitos), até o fato de que se deve respeitar, de forma geral, a decisão pessoal e autônoma sobre o consumo, passando ainda pelo fato de que a proibição frequentemente gera e alimenta a criminalidade. Tudo se embaralha quando pensamos na devastação que usos e abusos podem causar. Em meio a isso, talvez seja claro, no entanto, que a propaganda agrava o que já é péssimo. É por isso que, com razão, faz uns anos que se proíbe anúncios de bebida alcoólica que a associam a motivos infantis, entre outras restrições necessárias e bem-vindas. Inclui-se também nesse imbróglio o discreto charme que parte das camadas médias supõe transparecer, ao comprar do tráfico (ramo comercial que aterroriza comunidades e explora o trabalho infantil) os seus insumos. Eis mais um ato que se quer transgressão, mas que é apenas regressivo.

A esse processo soma-se outro problema igualmente antigo que, no entanto, nos últimos meses se acentuou. Temos lido na grande imprensa que brasileiros vêm se endividado para apostar nas bets, os sites disponíveis e ao alcance de qualquer um que tenha o corpo completo exigido nos dias de hoje, ou seja, que porte um smartphone, essa prótese irrenunciável que nos torna socialmente adequados e que garante nossa participação no que Christoph Türcke chamou de cultura do défice de atenção. Segundo se pode saber pelas notícias diárias, as coisas atingiram o intolerável para famílias que dependem do bolsa-família, programa do governo federal que tenta ajudar a manter vivas pessoas excluídas das possibilidades de gerar o próprio sustento. São as que compõem um grupo que já se chamou de desclassados, os marginais no sistema produtivo brasileiro. Pois bem, elas jogaram três bilhões de reais em apostas apenas no mês de agosto. 

Há todo tipo de jogador, mas há algo que unifica uma significativa parte deles: a fantasia de que poderá ter ganhos sem grande esforço, investindo na esperteza narcísica para a qual o telefone esperto (o smartphone) é o veículo. Não há mágica nas apostas, mas sim razão capitalista na ciranda financeira: a banca sempre ganha. Não se trata de fazer crítica moral, que diria que são preguiçosos os que jogam para tentar receber algo que nunca conseguirão com a labuta árdua do cotidiano – trabalho, aliás, com poucos ou nenhum direito, desregulamentado, desprotegido e explorado. O problema não é o indivíduo que joga seu sonho na máquina, mas o sujeito que se despedaça nesse processo. Resta, portanto, o devaneio desesperado de que vai dar para sair do buraco com um golpe de sorte e alguma euforia, em um país no qual a imobilidade social é a regra.    

É longa a tradição do jogo na cultura brasileira, assim como é persistente a relação dos mecanismos de poder político e econômico com as diferentes loterias. Basta pensar nas cartelas administrados pela Caixa Econômica Federal ou no jogo do bicho, a contravenção que desde sempre contou com a simpatia das forças de repressão do Estado e que esteve, ademais, associada à ditadura civil-militar (1964-1985). Com as bets o processo deu um passo a mais. Elas vão diretamente ao encontro do pensamento mágico brasileiro, forte a não mais poder, mas tão fraco quanto costuma ser a falta de perspectiva objetiva da sociedade. Uma das faces dessa infantilização é acreditar que o “universo conspira a favor”, ou que se é tão especial que as coisas, no final, vão dar certo. Não é casual que a autoajuda e os coachs prosperem como nunca entre nós. Desde quando o capitalismo perdoa os incautos? 

As peças publicitárias dizem que as bets são formas de divertimento, prometendo, como se fosse dinheiro fácil, bônus para quem participa do cassino virtual. Quando a isso se juntam sorrisos, promessas e o clube de futebol do coração dos torcedores, o cerco se fecha. Apostadores eventuais que perdem o escasso dinheiro do mês, jogadores compulsivos que veem arruinar o que já não têm, pessoas empobrecidas que sonham com o milagre: o Brasil é tão grande, mas parece que sua imensidão é insuficiente para tanto sofrimento e ilusão. 

 

Para saber mais
1. Agradeço a Danielle Torri a leitura e os úteis comentários, sem compromisso.

2. https://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL38130-5601,00-MINISTRO+REBATE+CRITICAS+DE+ZECA+PAGODINHO.html

 3. https://revistaserrote.com.br/2015/06/cultura-do-deficit-de-atencao/

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