“Ano passado eu morri, mas esse ano? Universidade e dissidências sexuais e de gênero em tempos de pandemia”

Juliana Perucchi1

Joana Machado2

Marco Duarte3

Na universidade, no cotidiano do campus, os currículos e dispositivos pedagógicos e administrativos colocados em ação se interpenetram e se articulam mutuamente. Em contexto de pandemia, essa teia de elementos torna-se mais complexa.

A exigência de implementação da modalidade de ensino remoto, imposta pelo coronavírus, trouxe desafios para estudantes, docentes, gestão e profissionais técnicos-administrativos. Os impasses colocados pelas alterações de espaço-tempo das aulas e demais atividades têm exigido a revisão de modelos de formação.

Diante dos riscos pandêmicos, a universidade se depara com situações e procedimentos pedagógicos que logo se evidenciam vinculados a processos sociais já conhecidos, de reprodução e reiteração de hierarquias sociais de classe, gênero, raça, geracionais e territoriais que, não somente interferem na formação e no desempenho acadêmico de estudantes, mas, reforçam a exclusão social.

Um dos pontos frágeis diz respeito à desigualdade de condições de uso e posse de tecnologias de informação e comunicação. Computador é um item presente em menos da metade dos lares brasileiros e muitas regiões do interior do país sequer possuem acesso à internet e, portanto, o ensino remoto no Brasil na pandemia da COVID-19 poderá reforçar hierarquias e desvantagens sociais, marginalizando populações mais vulneráveis e excluindo-as do aprendizado.

Em 2020, enquanto a universidade se preocupava em escolher ferramentas disponíveis no mercado educacional, para montagem de salas de aula virtuais em plataformas de ensino remoto de modo a garantir o ano letivo, estudantes de camadas populares e das periferias viam suas já atribuladas diferenças sociais se acentuarem em suas vidas, com perda de bolsas de estudo e aumento de tarefas domésticas causado pelo isolamento, sendo que, muitos estudantes tornaram-se também cuidadores de idosos, já que, em decorrência da pandemia, muitos avós mudaram-se para suas casas e outros com eles já viviam.

Entre as tarefas diárias de cuidados em saúde com seus familiares idosos ou doentes e as domésticas – inclusive, tarefas estas que muitas jovens já desempenhavam em seus “papéis tradicionais de gênero” antes da pandemia – estudantes tentam acompanhar aulas e fazerem exercícios na plataforma. Não é difícil entender como que, portanto, estudar deixe de ser a prioridade para muitos e muitas jovens, por sobrevivência ou ausência de condições materiais para garantir-lhes tal expediente. 

O problema é que, nem sempre tais elementos são levados em conta pela universidade em suas estratégias de ensino remoto que já apresentam uma série de dificuldades inerentes à própria tecnologia, como certas inviabilidades técnicas de acesso à rede internacional de computadores, bem como, aos equipamentos necessários para tal aprendizado.

No que concerne a estudantes LGBTQI a situação do isolamento social residencial, em convívio exclusivo e restrito com membros da família (muitas vezes preconceituosos) impôs a exposição involuntária de muitos jovens que viviam sua sexualidade ou identidade de gênero sem abrir publicamente para sua família.

Jovens vivenciam experiências de ausência de privacidade, violação de intimidade, e vulnerabilidades, ou mesmo, experiências de confinamento que transformam seus “armários” em “cristaleiras”, cujas portas de vidro translúcido permitem que se veja tudo aquilo que ele ou ela tentava esconder de seus parentes, buscando se proteger daqueles que, no seio da família homofóbica, poderiam lhe fazer algum mal.

Quando na universidade, em ensino presencial, entre outros LGBTQI seus pares, docentes ou técnicos, podia experienciar suas descobertas, deixando abrir uma fresta nas portas do “armário”, ainda que permanecesse lá dentro. Tantos meses em isolamento social, em casa, muda a perspectiva das pessoas. Estudar, mesmo para quem gosta ou deseja, deixa de ser prioridade quando o risco iminente da morte física ou simbólica de si, ou de quem se ama, torna-se tão próximo e tão banalizado.

 

1Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora.

2Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.

3Professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora.


Imagem de Destaque: Daniel Watson/Unsplash

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