A dupla dimensão política de Cidade Invisível

Evelyn Orlando

A série Cidade Invisível, criada por Carlos Saldanha e lançada pela Netflix em 5 de fevereiro de 2021, está entre as mais vistas em 40 países do mundo. Pode-se dizer, em uma leitura rápida, que em sua primeira temporada, com 7 episódios, seu criador resgata o folclore brasileiro em uma versão adaptada para adultos e coloca a literatura nacional no circuito internacional. Mas, Carlos Saldanha faz mais do que isso. 

Gerações de brasileiros de todas as regiões do Brasil cresceram lendo, ouvindo e/ou assistindo as histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo, produzidas por Monteiro Lobato para o público infanto-juvenil. Essas histórias, no entanto, fazem parte do folclore brasileiro há muito tempo como produto das culturas indígenas, africanas e portuguesas, as quais pela tradição oral fizeram-nas circular em diferentes contextos, sendo contadas e recontadas, assombrando e encantando aqueles que as ouviam e as repetiam para a geração seguinte. Se a adaptação de Carlos Saldanha ao contexto moderno foi feita sem a menor cerimônia, nossas práticas de transmissão da cultura seguem o mesmo curso. Quem nunca ouviu e cantou “Nana neném que a Cuca vem pegar…”? Na série, essa é a forma que a tão temida Cuca entra no inconsciente das pessoas, e na vida real, de certo modo, é também com o intuito de incutir certo medo que cantamos essa canção de ninar. O medo pelo inconsciente. Podemos nos perguntar, tal como nos provoca Januária Alves, pesquisadora brasileira do folclore, “Por que será que temos tanto medo – ou tanta ignorância, sei lá – pelas histórias e personagens que mostram as nossas características, bem humanas, diga-se de passagem, que espelham nossas imperfeições e maravilhas? Será que tememos, tão somente, os monstros das nossas lendas? O que precisamos perguntar para que possamos responder honestamente a esses questionamentos?”  

A incrível Cuca de Carlos Saldanha, que alia voz doce, presença forte e sedutora, desconstruindo nossas representações literárias da personagem, nos dá a resposta em uma conversa com o Saci: 

“As pessoas são cruéis, Isac. 

Elas têm medo de tudo que é diferente, 

porque a gente revela o quanto elas são absolutamente iguais. 

E entediantes.” (T1, Ep. 5).

E esse é o eixo central da trama de Carlos Saldanha. O diferente existindo no lugar que dita o padrão, institui a norma e os códigos de urbanidade, a corte de outrora, referência para as províncias de todo o país: a cidade do Rio de Janeiro. Na versão de Carlos Saldanha, essas lendas, oriundas em larga medida dos povos das florestas ou das regiões mais interioranas, ocupam a cena urbana e revelam com personagens fabulosos – na dupla acepção do termo – os conflitos de suas existências na cidade moderna, admitidos no âmbito do imaginário, mas não na realidade. O Rio de Janeiro aparece em suas várias contradições: lindo e caótico, com seus becos, suas mazelas, mas também seus recantos e refúgios. Não é por acaso que esses últimos são sempre remetidos à comunidade da Vila Toré, na floresta, lugar das fantasias, quase desconectado da realidade urbana. 

Além disso, Cidade Invisível possui a genialidade de lançar luz a um problema político, socioambiental e cultural de efeito genocida pela via da literatura. A trama se desenrola em torno de uma investigação policial sobre disputas econômicas de reservas naturais que traz à luz diferentes sujeitos – mitológicos e humanos – à beira da extinção. Nesse sentido, o folclore é alegoria para uma discussão política sobre essas disputas e traz à luz as existências de toda uma população que, em meio ao contexto moderno, luta pela sua preservação, pelo direito de existir, que vai sendo fortemente atacada a cada capítulo. O enredo é cultural e, sobretudo, político. 

A adaptação de seres lendários ao contexto moderno instiga e encanta ao mesmo tempo que desnuda uma política de morte em relação. Desde a primeira cena – um fazendeiro caçando por prazer, mesmo sendo alertado que esse não era o código daquele lugar, ignorando solenemente a cultura e o direito à vida – à última, quando algumas entidades lutam e recuperam o controle, ainda que parcial, do seu território e de suas identidades, se trava uma disputa em torno da aniquilação, da extinção, da supressão do direito à vida em suas muitas formas, inteligíveis ou não para muitos de nós. 

Entre a ficção e a realidade, Carlos Saldanha nos coloca frente a uma história de uma cidade invisível porque invisibilizada, não compreendida em suas diversas representações ou manifestações, identidades e passível, por isso, de perseguições e ataques. Cidade Invisível é, portanto, duplamente política, seja ao lançar luz a aspectos da nossa cultura – afirmando a diversidade do povo brasileiro caracterizada no folclore -, seja pela política de morte que dá o tom às disputas ambientais.


Imagem de Destaque: Netflix/Divulgação/Canal Tech

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *