A formação militar não pode estar alheia ao controle civil

Alexandre Fernandez Vaz

Quatro meninos com idade entre 13 e 14 anos caminhavam por Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro, na semana retrasada. A situação corriqueira sucedia uma tarde de futebol e tudo ia bem até que eles foram, como se diz no jargão popular, enquadrados. Uma patrulha da Polícia Militar, armada de fuzis, parou-os, fez com que se deslocassem para uma garagem de prédio e revistou-os de uma forma que parece ser costumeira: invasiva e humilhante. Três dos garotos, sendo estrangeiros, tiveram alguma dificuldade no contato, mas o quarto era brasileiro e deu as explicações que os PMs pediram, não sem ser advertido, junto com os outros, de que era melhor que não ficassem andando por aí, o que poderia resultar em nova abordagem. Tudo isso sabemos pela leitura dos jornais, cuja divulgação de cena tão corriqueira se deve a que um dos rapazes, o que conversou com os servidores públicos armados, é neto do jornalista Ricardo Noblat. Trata-se de uma pessoa branca, enquanto os outros, filhos de diplomatas a serviço no Brasil, são negros. 

Poucos dias depois, mas agora de São Paulo, passou a circular um vídeo que, não estivessem os adultos fardados de cinza e não fosse o conteúdo dos versos cantados o que era, poderia bem ser de uma festa qualquer de jovens. É uma roda com homens e mulheres batendo palmas, enquanto no centro dela um dos rapazes dança entoando o mantra que é repetido pelos colegas. Ele dá vivas ao Massacre do Carandiru, episódio ímpar na história do sistema prisional brasileiro (embora não exatamente excepcional), caracterizado pela invasão e morte de 111 internos da extinta Casa de Detenção, pelas mãos do Pelotão de Choque. Mais para o final do lúgubre filmete pode-se ouvir o narrador bradando que bate continência para o coronel Ubiratan Guimarães, o comandante de tal chacina. Entre julgamentos, condenações, sentenças, medidas protelatórias e até um indulto decretado por Jair Bolsonaro que beneficiava parte expressiva do contingente envolvido no episódio (medida depois anulada pelo Supremo Tribunal Federal), até hoje ninguém cumpriu pena. O comandante da ação, inicialmente condenado a 632 anos de prisão, foi posteriormente absolvido por ter atuado “no estrito cumprimento do dever legal”. Morreu assassinado em 2006.

Um e outro episódio dizem de um modus operandi e, mais do que isso, de um espírito que se entroniza na PM, assim como de resto no militarismo nacional. A paranoia do inimigo interno, tão presente desde pelo menos o anticomunismo varguista, se mantém contra movimentos populares e comunidades empobrecidas. A caserna é um mundo fechado sobre si mesmo, sustentando-se ideologicamente sobre uma suposta superioridade moral sobre os civis, o que, como está mais do que provado, não é verdade. O que garante a distância entre castrenses e sua contraparte é, no entanto, outra coisa: a possibilidade de os primeiros exercerem a coerção armada de maneira legal, o que frequentemente resvala para o autoritarismo, a violência e a defesa dos próprios privilégios. 

Um dos pilares desse processo difícil de superar é a formação. Enclausuradas em suas próprias regras, as escolas das Forças cumprem formalmente os requisitos do Sistema Nacional de Educação, mas, em nome das características da carreira, reforçam estereótipos e narrativas equivocadas sobre a história e a sociedade – por exemplo, que o golpe de 1964 salvou o país do comunismo. O que acontece no interior dessas instituições formadoras, que torna possível que atos como os acima mencionados sejam possíveis? 

Faço uma pausa. Referindo-se, há quase 50 anos, ao que constituiu um estado de coisas que culminou em Auschwitz, Theodor W. Adorno criticou a educação para a dureza, aquela que prepara para a legitimação da barbárie, que ajuda a produzi-la. Cito a partir da competente tradução de Maria Helena Ruschel: “A ideia de que a virilidade consiste na capacidade de aguentar até o limite da resistência foi, durante muito tempo, a imagem encobridora [Deckbild] de um masoquismo que – como foi demonstrado pela psicologia – tão facilmente se funde com o sadismo. A enaltecida dureza que a educação deve conseguir significa, pura e simplesmente, indiferença à dor. A propósito, não há muita distinção entre a dor própria e a alheia. Aquele que é duro consigo mesmo se arroga o direito de ser duro também com os demais e se vinga neles da dor que não pode manifestar, que teve que reprimir.”

Parece muito distante de nós? Ao recorremos à boa literatura, como aquela praticada por Carlos Eduardo Pereira em Agora Agora (Todavia, 2022), encontramos esse modelo em modo puro e operante. Ao explorar três momentos de um mesmo personagem, ele mostra, em escrita que plasma a experiência histórica do presente, como o racismo estrutural materializado nessa mesma educação para a dureza vai formando não apenas um sujeito, mas uma sociedade. Não por casualidade, o enredo ganha seu clímax em uma escola militar fictícia em Barbacena, Minas Gerais, que será frequentada pelo personagem, morador do Rio de Janeiro. É lá que, longe da vista dos de fora, as atrocidades acontecem e que se forja não apenas alguém identificado com a brutalidade que lhe foi infligida, mas uma vida social cujo alicerce é a violência regular e normalizada. 

(Uma nota, entre parênteses: poderíamos recorrer também ao cinema mainstream, aquele que glamourizou não uma academia, mas o treinamento e as ações dos soldados do Batalhão de Operações Especiais da PM do mesmo Rio de Janeiro. Frente ao filme Tropa de Elite [2007], de José Padilha, não é com a violência contra o mal, os corruptos e os vagabundos, que nos identificamos, embalados por trilha sonora inebriante, mais ou menos como acontece com aqueles rapazes e moças em rodinha entoando um cântico de louvor ao coronel Ubiratan? Então, por que não gozar com a admissão de que, final das contas, só havia mesmo bandido e lixo no Carandiru? Não é difícil se deixar seduzir pela barbárie.) 

A evocação de um processo de redemocratização mais exitoso que o nosso talvez ajude a pensar. A jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar relata que na Espanha, depois de 50 anos de franquismo, a transição passou pelo estabelecimento de novas relações entre sociedade civil e Forças Armadas. Teriam sido três os principais pontos de negociação, nenhum deles fácil de alcançar: a aposentadoria de centenas de generais que permaneciam na ativa de forma vitalícia; a superação da ideia do inimigo interno, usada como justificativa para a atuação armada no interior das fronteiras; o intercâmbio entre as academias militares e as instituições civis. Todos são pontos exemplares para nossa realidade.

Não é possível tolerar que os castrenses continuem ameaçando a sociedade, ao invés de protegê-la. É indubitável a importância de Forças Armadas profissionais e bem equipadas, agindo principalmente no movimento de dissuasão de conflitos bélicos internacionais. Mas isso significa o necessário esvaziamento de sua função política (esta não pode ser feita com armas na mão) e o questionamento sério do caráter militar de uma força de segurança atuando no interior das fronteiras do país. Um passo importante nessa direção é colocar sob escrutínio público a formação que vem sendo realizada nas escolas de praças e oficiais. Posso entender que não seja fácil realizar esse movimento, mas já passou da hora de enfrentarmos, com clareza e espírito público, um problema cujas consequências todos sabemos quais são.   

Considerações
Agradeço à Bruna Avila Silva pela leitura e ponderações. Sem responsabilidade.

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