A fábula fala de ti – exclusivo

Bruno Bontempi Jr.

Nos últimos meses, os modorrentos domingos dos telespectadores brasileiros têm sido animados com coberturas jornalísticas tão insistentes quanto hipertrofiadas das manifestações de rua pelo país. Nessas, estrategicamente agendadas para os fins de semana para que não perturbem a rotina corporativa, a programação semanal das emissoras e o trânsito dos veículos particulares, cidadãos e cidadãs aos brados envergam orgulhosamente faixas, bandeiras e camisetas da imaculada seleção brasileira de futebol para protestarem “contra a corrupção” no país. Ainda que as palavras de ordem e os objetivos dos protestos sejam difusos (“menos roubalheira, mais saúde, segurança e educação”), neles reivindica-se majoritariamente o impedimento da presidente, o encarceramento imediato de todos os filiados a seu partido, o fim das políticas de distribuição de renda, o exílio voluntário dos divergentes para a Venezuela e, com faixas escritas em inglês para nos envergonhar perante o mundo, a imediata intervenção militar. Esta última e drástica medida, alegam, reporia a ordem em tudo e preservaria — pasmem — a democracia. 

Para os que batalhamos cotidianamente na e pela educação pública, poucas coisas podem soar tão mal quanto a hipótese de restituir a governança militar ao país. Contra esse disparate será preciso sempre lembrar o verdadeiro desastre por ela perpetrado nas duas intermináveis décadas de chumbo, estendido como um mar de lama perene sobre a educação e a cultura. Sem adicionar maiores comentários, entre os grandes feitos patrióticos dos generais neste campo estão a redução da ação direta do Estado na educação, retirando da Constituição a reserva de dotações orçamentárias para o sistema escolar; o incentivo à formação de grandes conglomerados de escolas particulares e “cursinhos pré-vestibular”; a apropriação da teoria do capital humano, com orientação tecnicista do ensino; a adoção de medidas de intimidação, perseguição e expurgo de docentes e estudantes contrários ao regime. No ensino superior, os verde-oliva anteciparam aposentadorias de professores, fecharam ou deixaram à mingua institutos de pesquisa, sitiaram universidades e forçaram a fuga e o exílio de cientistas. Vigiaram diuturnamente professores, gestores e estudantes do ensino básico, eventualmente presos, torturados e “desaparecidos”; fecharam os centros acadêmicos e eliminaram a representação estudantil das instâncias escolares e universitárias; exerceram censura prévia e exclusão de livros considerados subversivos das bibliografias. Como se não bastasse, o regime criou as disciplinas Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil, cujo objetivo era transmitir a ideologia da Segurança Nacional.

A ditadura promoveu a devastação da escola pública, seja por restringir suas verbas e rebaixar os salários do magistério no contexto geral do “arrocho”, seja por desestruturar o ensino médio, indefinido entre “propedêutico” e “profissionalizante” (ver meu artigo de 6/3/2015). As políticas de governo para a educação no regime militar brasileiro resultaram, trocando em miúdos, na perda de oportunidades educacionais para a maioria da população, expressa na redução de frequência à escola elementar e no aumento da evasão. A classe média, diante do sucateamento da escola pública e tendo para si ofertada uma rede cada vez maior de escolas médias preparatórias, “investiu” parte de seu orçamento familiar na educação dos filhos, deixando a escola pública decadente para os pobres. 

Fundado na violência, na censura e na propaganda oficial, o regime apostou tanto no rebaixamento do padrão da escolarização, que chegamos ao final dos anos 1980 com quase metade da população maior de 10 anos de idade mergulhada no analfabetismo. Justamente em 1964, ano tão comemorado pelos atuais manifestantes, foi extinto o Programa Nacional de Alfabetização, encabeçado por Paulo Freire, para a promoção do malfadado Mobral, que prometia acabar com o analfabetismo em dez anos, mas que levou vinte só para reduzi-lo minimamente. Sem dúvida, porém, a maior e mais persistente herança dos governos militares brasileiros vem a ser justamente a produção da ignorância política que ora sustenta o ímpeto dos manifestantes de domingo. Afinal, só mesmo uma bem acabada obra de despolitização, ocultamento da história e falsificação poderia conduzir tanta gente comum às ruas para pedir a volta de um regime que prendia quem ousasse se enrolar na bandeira nacional e que matava quem erguesse faixas em protesto. A fábula, diria Horácio, fala de ti.

 

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