A experimentação do periférico – quatro anos sem Salim Miguel

Natan Schmitz Kremer

Alexandre Fernandez Vaz

No dia 22 deste mês comemorou-se quatro anos da morte de Salim Miguel. Com extensa obra composta por mais de 30 títulos, o escritor catarinense passou pelo conto, romance, teatro, crônica, crítica, ensaio, roteiro de cinema. Em seus escritos encontramos uma série de questões que acometeram o país na segunda metade do século XX e nas primeiras décadas deste. Ponto comum em sua obra é a elaboração de uma imagem de Florianópolis.

Já em seus primeiros livros, publicados pelas Edições Sul, encontramos a cidade como objeto de investigação literária. Em Velhice e outros contos, o carnaval e a população negra são transformados em narrativa, os descompassos da velhice e da perda de sentido na cidade atestam as reformas urbanas, o desejo aparece como construção de um sujeito universal, rompe-se com as chaves de leitura que privilegiam o atraso. O livro é, na verdade, provavelmente a forma mais sólida do que foi o modernismo que frequentou a cidade entre as décadas de 1940 e 1950, o Grupo Sul, espaço de estreia de Salim, cujo principal veículo foi a Revista Sul.

Ao longo dos dez anos de publicação do impresso (entre 1948 e 1957) o autor, mas também os colegas Ody Fraga e Silva, Anibal Nunes Pires, Walmor Cardoso da Silva, Guido Wilmar Sassi, além de Eglê Malheiros, com quem veio a se casar, empreenderam uma disputa constante com a intelectualidade estabelecida da cidade, rompendo formalmente com a estética da Academia Catarinense de Letras, rompendo discursivamente com a história oficial inventada pelo Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. O espírito do tempo é o da aproximação ao PCB, leituras de Sartre e de Freud, novo olhar à história da literatura pautado pelas preocupações do modernismo de 1922, mas também de 1930, além da prosa urbana de Marques Rebelo.

Os sucessos foram muitos, desde a venda da revista na Livraria José Olympio, no Rio de Janeiro, maior casa editorial do momento, até a circulação pelas então colônias portuguesas, Angola e Moçambique, assim como pelos países vizinhos, Argentina e Uruguai. Os tempos eram outros. O mercado editorial nacional ainda não se encontrava consolidado em torno de monopólios, a possibilidade autoral se via menos condicionada pela repetição formal que parece dominar as Letras hoje. E a troca, intensa, levou Sul a tantos lugares – mas fez, também, com que diversos autores, tanto dos países já citados, quanto de muitas cidades brasileiras que se modernizavam nas primeiras décadas do século XX, ali publicassem. Florianópolis, longe da repetição dos moldes do centro, era o lugar de materialização de certa produção do Sul global.

Se os sucessos, dissemos, foram muitos, as consequências indesejáveis também. Na sombria passagem de março a abril de 1964, Salim e sua esposa foram levados ao cárcere, consequência do golpe que acometera o país. O absurdo era tamanho que, em suas memórias da cadeia, destaca na descrição da cena da prisão que acreditava tratar-se de brincadeira elaborada por algum amigo. Não era. A livraria da qual havia sido dono foi queimada, ao retornar à liberdade conhecidos lhe recomendaram sair da cidade. A prisão, sugere nas memórias, foi consequência de sua atuação modernista.

Salim, à primeira vista, não foi um escritor de grandes experimentações. Mas talvez algumas escolhas o diferenciem de contemporâneos que se projetaram mais do que ele, como Lygia Fagundes Telles e Carlos Heitor Cony. Uma delas é o lugar do trauma. A narrativa de Salim pode ser dividida em dois blocos: “Florianópolis” um deles, “Memória” o outro. Evidentemente as questões se interseccionam, mas há duas imagens, uma respondendo a cada “tema”, que se repetem em sua narrativa.

No que diz respeito à “Memória”, o personagem Ti Adão retorna constantemente nos escritos de Salim. O velho negro luandês, que tem sua primeira elaboração literária em conto de 1953, é situado na passagem do milênio, em 1999, no romance Nur na Escuridão, obra autobiográfica no qual rememora a chegada da família ao Brasil, vindo do Líbano, e os anos de infância e adolescência, principalmente no armazém de secos e molhados do pai, em Biguaçu (cidade próxima a Florianópolis, no litoral). É no armazém que Ti Adão conta casos e histórias, lembra-se do vivido, narra experiências. Deve ter sido ele o primeiro narrador que Salim conheceu, ao mesmo tempo em que lia, com a mãe, as fábulas das Mil e uma noites. A escrita de Salim é uma narrativa de retornos.

Ao tratar de “Florianópolis”, o retorno não é propriamente o de um personagem, mas de uma estrutura que sempre acaba por mostrar algo de violência. Em A Voz Submersa, romance de 1984, o assassinato de um estudante no Rio de Janeiro, por parte do regime ditatorial, é associado em uma imagem traumática a um possível estupro sofrido pela narradora, Dulce, nas margens do Mercado Público de Florianópolis.

A narrativa de Salim é circular. Seus temas são contemporâneos, como fica evidente em seu último livro, a novela policial Nós (2015), escrita quando o autor já se encontrava sob o abalo da cegueira, o que o fez construir o texto ditando para que outros o digitassem. Nela há toda uma crítica a certa invenção de Florianópolis como cidade natural, marcada por um imaginário bruxólico (“é tudo mentira, invenção”, escreve), opondo-se ainda à cristalização que a vida política (e não intelectual) da cidade produziu em torno da figura do folclorista Franklin Cascaes. Mas ao mesmo tempo em que se atualiza, em que os dilemas que coloca são novos, há uma espécie de regresso a uma imagem do trauma. O afastamento da ideia de natureza já estava no conto Alvina, essa minha noiva, do já citado Velhice e outros contos, de 1951, assim como a crítica às instituições que cristalizavam pessoas e estéticas.

Esse jogo de retornos pode expressar algo da experimentação de Salim. Ele fala, talvez, de um processo constante de deslocamento para elaborar a própria experiência estética, visto ser ela o elemento traumático. Não propriamente – ou não apenas – uma literatura que busca elaborar o trauma do narrador/personagem (os romances de Michel Laub como exemplo), ou uma literatura que procura o trauma do autor (como nos escritos de Julián Fuks), senão o escrito como lugar mesmo do trauma. Quase como se, em Salim, a literatura deixasse de ser um meio, deixasse de ser sublimação, e virasse coisa inteira: fonte da angústia e da violência, logo matéria do texto, ao mesmo tempo em que forma de elaboração. As narrativas de Salim são uma encenação da Florianópolis de meados do século XX.


Imagem de destaque: TV UFSC/ Reprodução

 

 

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