Vozes de uma leitura

Ivane Laurete Perotti

Lia Rosa, o Guima, quando uma estudante me pediu para lê-la. A ela, não ao Rosa. Diante dos textos em cheque, a metonímia, quase esquecida, imbricou na questão do gênero. POV1: textual. Estava na escola. Rosa exigia tempo. Lugar. A estudante também. Exigia-me a leitura. Dela. Tão somente. Como se fosse pouco. “Ler” um  textual humano exige o cumprimento de algumas condições nada saussureanas. O signo linguístico encabula-se. Contrai-se no esqueleto sintático. Banem-se as palavras. A frase emudece. Respeitosa. Invertida. O dizer se fecha, peremptório. Sem prazo legal, cancela-se. 

Ler é processo. Dialógico. Discursivo. Incursão de partes. Negociação de sentidos.  É movimento aberto. Inacabado. Inconcluso, mesmo que completo. Ler é despertar o já lido. Provocar o futuro. Instalar os medos do pretendido. Dar de cara com o vazio. Válido. Reverberante. Ceifar o autor no encontro de si e dos outros. Ler é abrir espelhos. E ela estava ali. Com uma pilha deles. Multifacetados. Em camadas. Côncavos. Antigos. Planos. Dupla face. Nenhum decorativo. Alguns adolescentes são assim: resistem às lapidações. Usam a própria face na tecedura das máscaras sociais. Armaduras do real. 

Resoluta. Repetia: “Profe! Me lê.”. No canto daqueles olhos brilhados na força da resistência, eu me ouvia, repetindo Rosa: gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. […] porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como o sofrimento dos homens.” (1994,pág 122). 

Era eu, o crocodilo. Escamosa. Dentada. Lenta na rendição. Nadava na profundeza daqueles olhos. “Me lê! Me lê!”. As fomes de leitura acovardando-se diante do textual humano. Obra aberta. Nome, sobrenome e título em espera. A vida em stand by. Os sonhos  sem fixidez. As dificuldades repassadas por herança. Genética. Social: projetos do cúmulo. De nuvens e de vontades. Cortadas na pele. Todas elas. Desde cedo. “Me lê, profe!”.

Os sofrimentos são sombrios. Intranquilos, Guima! Pelo menos ali. Naquela adolescente que desprendia pedaços de narrativas por todos os poros. Correnteza de soluços. Crenças antigas amarrando-lhe pulsos e voz. Despropósitos no bolso. Chinelos nos pés. Olhos de botão. Cílios em cinta. Desejei dizer apenas com os braços. Em pinça. Mas ela queria mais. Desejava-se lida. Significada. Então, afetada,  mergulhei. Não se volta igual depois de uma leitura miúda. Conectada.

O Rosa descansava sobre a mesa.

Era eu, o crocodilo.

1 Point of View… não resisti à tentação de usar um elemento da navegação não linear. Ponto de vista! Óbvio! Ou não. 

 

Para ler mais
ROSA, João Guimarães. O Grande Sertão Veredas. São Paulo/SP: Editora Nova Aguilar, 1994.

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