Na Audiência Pública realizada pela Comissão Mista que discute a MP 746/2016, que trata da reformulação do Ensino Médio no Brasil – na última quinta-feira, a Secretária Executiva do Ministério da Educação, explicitou alguns aspectos orientadores dos modos pelos quais esta política está sendo mobilizada. De acordo com a secretária, a MP 746 flexibilizará o currículo escolar e ampliará as possibilidades de acesso e de inserção escolar dos jovens de baixa renda na escola pública de nosso país. Defendeu ainda que “a proposta dá uma chance para o jovem fazer escolha e não ser obrigado e cursar disciplinas que não representam nada para ele”.
A referida secretária executiva argumentou também que um Ensino Médio comum para todos não prepara nem para a vida, nem para o ensino superior (no máximo seria um curso preparatório para o Enem). Remetendo o debate sobre a flexibilização curricular para a LDB, criticou a atual forma curricular predominante nesta etapa da Educação Básica como “absurdamente enciclopédica”. Em sua percepção, “o currículo não aprofunda o conhecimento em nenhuma área e, ao contrário de formar cidadãos, forma um analfabeto funcional ao final do Ensino Médio”. Afirmou ainda que, em razão disso, 80% dos jovens brasileiros apoiam a urgência da mudança.
Variadas instituições, de caráter público e privado, têm produzido argumentações críticas ao regime de implementação dessa reforma, sinalizando para uma impaciência governamental frente ao andamento dos resultados desta etapa da educação básica. Outros grupos, procuram construir posições políticas e pedagógicas que defendem o conteúdo da reforma como uma possibilidade de mudança face aos dilemas enfrentados pelo Ensino Médio de nosso país. Para além dessa questão, importa refletir que há efetivamente elementos para afirmar que o Ensino Médio está em crise e, ao mesmo tempo, é inegável o caráter apressado e arbitrário da reforma ser conduzida pelo instrumento de uma medida provisória. Então, mesmo que reconheça a pertinência deste debate público, atualmente mobilizado no Brasil, vou propor nesta fala outros modos de crítica política, assentados na literatura pedagógica contemporânea e em minhas experiências enquanto coordenador pedagógico de escolas de nível médio na rede estadual do Rio Grande do Sul. Farei três breves comentários sobre a MP 746, evitando um ataque frontal, mas registrando em suas margens diferentes nuances que a intensificação das desigualdades educacionais parece adquirir em sua pauta curricular e em seus eventuais regimes de implementação.
1. Predominância de critérios utilitaristas para a seleção das disciplinas e dos conhecimentos escolares
A busca pela construção de currículos escolares atraentes e inovadores para o Ensino Médio, no Brasil, tem sido central nos discursos políticos e nas práticas pedagógicas engendradas no decorrer das últimas duas décadas. São variados os regimes argumentativos mobilizados nesse período, ora sintonizados com as demandas sociais e as culturas juvenis, ora articulados às necessidades do mercado e à promoção de novas oportunidades educacionais. Em comum a essas possibilidades, facilmente podemos constatar uma ênfase na organização disciplinar dos currículos escolares, em seus altos índices de evasão e repetência ou mesmo em uma suposta inoperância na formação de mão-de-obra qualificada.
Recentemente, esses argumentos têm adquirido novas roupagens, direcionando-se para o desenvolvimento de currículos flexíveis, ajustados aos interesses e às possibilidades de escolha dos estudantes (SILVA, 2016b). A organização curricular proposta pela MP 746, centrada na diferenciação dos itinerários formativos, associados a uma ênfase por determinadas disciplinas (como Língua Portuguesa e Matemática, por exemplo) pode encaminhar uma concepção utilitarista do conhecimento. A própria defesa realizada pela Secretária Executiva do Ministério, anteriormente referida, sugere que a escola para os jovens urbanos precisa ser pautada em sua capacidade de escolha, conferindo destaque para essa concepção de conhecimento. Uma crítica a essa questão poderia ser sistematizada na interrogação proposta por Lenoir (2016): “Podemos conceber o ser humano como um mero elemento de um conjunto, um ator isolado tendo por motivos o interesse instrumental como únicas perspectivas humanas e sociais de relações utilitárias de tipo mercantil?” (p. 161).
De acordo com o autor, as atuais políticas educacionais, inclusive no ensino superior, supõem novas formas de “gestão do capital humano”, regidas por princípios como “eficiência, eficácia, produtividade, competitividade, desempenho, flexibilidade e desregulamentação” (LENOIR, 2016, p. 161). Nas condições de nosso tempo, ainda segundo Lenoir, “o princípio do humanismo foi substituído por aquele do profissionalismo, que os estadunidenses chamaram no fim do século XIX de ‘vocacionalismo’ (no sentido de vocação profissional)” (2016, p. 163). A adesão ao utilitarismo, em termos de políticas curriculares, conduz a novos imperativos pedagógicos para o Ensino Médio, ancorados nos pressupostos “do investir, do inovar e do empreender” (SILVA, 2016a).
2. O posicionamento do estudante enquanto um estrategista de seu próprio percurso
Certamente preciso reconhecer que as demandas por flexibilizar currículos e personalizar percursos formativos não se tratam de nenhuma novidade na Contemporaneidade Pedagógica, sendo defendidas por variadas correntes educativas. Todavia, para fins dessa reflexão, gostaria de propor uma singela historicização e uma rápida problematização. No que se refere ao Ensino Médio, no decorrer da segunda metade do século XX, com a ampliação dos processos de democratização do acesso à escola e a prolongação do tempo de escolaridade, podemos constatar os diferentes processos de segmentação e seleção na oferta. Tal segmentação na oferta ocorreu de forma ambivalente, uma vez que emergiu ao tempo de um novo reconhecimento cultural das juventudes. As velhas regras da escolarização estavam sendo contestadas e, de acordo com o sociólogo Danilo Martucelli, “o collège e o ensino médio surgem como um espaço aberto à vida pessoal e à comunidade juvenil”. Sem dúvida, uma das derivações desse cenário é a individualização dos percursos formativos.
Num universo escolar institucionalmente unificado, mas socialmente diversificado, onde cada indivíduo torna-se responsável por seu próprio destino escolar, a tendência à individualização dos percursos se acentua. Doravante, cada ator é submetido a um conjunto de provas que ele mesmo é obrigado a honrar, e que pode assumir diferentes contornos segundo o lugar dos alunos no sistema educativo, seus recursos culturais, suas socializações familiares, mas igualmente seu sexo, sua nacionalidade ou tipo de escola que frequenta (MARTUCELLI, 2011, p. 292).
Todavia, e aqui encontra-se minha problematização, tal individualização adquire contornos específicos em contextos diferentes. No caso dos ambientes populares, por exemplo, esse processo aproxima-se da responsabilização dos indivíduos. Ainda conforme Martucelli, “o indivíduo não é mais imaginado herdeiro de uma posição social; ele é tornado responsável pelas próprias aquisições”. Nos marcos da construção de uma escola justa, a responsabilização pode converter os estudantes em estrategistas de seus percursos; porém, partindo de recursos desiguais. Este cenário pode reforçar o histórico dualismo das políticas educacionais brasileiras, intensificado com a emergência de novas precariedades (BUTLER, 2015).
3. Reforço do histórico dualismo escolar e a retomada do comum enquanto pauta política
Em um exercício de síntese poderíamos considerar que as políticas de escolarização no Brasil, sobretudo aquelas destinadas aos jovens das periferias urbanas, geralmente são mobilizadas a partir de três compromissos, quais sejam: a contenção da pobreza através do acolhimento social, o atendimento às questões econômicas por meio da empregabilidade precária e a melhoria do desempenho e dos indicadores educacionais dos sistemas de ensino. Esse cenário adquire contornos perversos na medida em que tais racionalidades políticas são colocadas em ação para planejar o desenvolvimento curricular das escolas públicas de nosso país.
Outra nuance dessa questão diz respeito a própria crise da transmissão de uma cultura comum ou mesmo a impossibilidade de construção de um modelo ético comum – potencializada no interior de uma individualização dos percursos formativos. Aprendi recentemente com a filosofia política de Judith Butler a importância de seguirmos pensando a universalidade (ainda que sob outros registros). De acordo com a filósofa, “o problema não é com a universalidade como tal, mas com uma operação da universalidade que deixa de responder à particularidade cultural e não reformula a si mesma em resposta às condições sociais e culturais que inclui em seu escopo de aplicação” (2015, p. 17). Com isso, de modo geral, preciso considerar que atender as especificidades dos estudantes é uma operação curricular importante; todavia, não seria politicamente relevante esgotar as possibilidades de pensar o universal.
Inspirado no pensamento político de Butler (2015), como estratégia de reação política a um cenário em que a individualização dos percursos tornou-se um imperativo curricular, valeria a pena retomar o conceito de responsabilidade. Em sua filosofia, significa reconhecer que “nossa responsabilidade não é apenas pela pureza de nossas almas, mas pela forma do mundo habitado coletivamente” (p. 141).
Para concluir
Nesta breve reflexão sobre a MP 746 procurei sistematizar algumas racionalidades políticas que orientam sua implementação. Do ponto de vista curricular, procurei engendrar minha abordagem a partir da predominância de critérios utilitaristas que perfazem a seleção dos conhecimentos e das disciplinas escolares, do posicionamento do estudante enquanto estrategista de seu percurso formativo e, por fim, da retomada das possibilidades políticas de pensar uma pauta comum para a escolarização pública. Objetivamente, entendo que três questões precisariam estar permanentemente em debate para pensarmos as políticas curriculares para o Ensino Médio: a) as finalidades e os propósitos públicos da escolarização; b) a ampliação do repertório cultural dos jovens contemporâneos; c) a retomada da escola enquanto uma possibilidade de experimento democrático. Essas questões tornam-se emblemáticas na medida em que a escola, em sua dimensão pública, continua sendo o melhor lugar para as lutas políticas em torno da igualdade e da inclusão social.
Referências:
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
LENOIR, Yves. O utilitarismo de assalto às ciências da educação. Educar em Revista, n. 61, p. 159-167, 2016.
MARTUCELLI, Danilo. Efeitos sociais e políticos da educação. In: VAN ZANTEN, Agnès (Coord). Dicionário de Educação. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 291-295.
SILVA, Roberto Rafael Dias da. Investir, inovar e empreender: uma nova gramática curricular para o Ensino Médio brasileiro. Currículo sem Fronteiras, v. 16, n. 2, p. 178-196, 2016a.
SILVA, Roberto Rafael Dias da. Currículo e conhecimento escolar na sociedade das capacitações: o Ensino Médio em perspectiva. Revista E-curriculum, v. 14, n. 2, p. 676-697, 2016b.
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