Há algum tempo venho refletindo, a partir da incursão na Educação Básica e na formação de seus professores e professoras, sobre o que poderia (e o que não poderia) ser considerado“escolar”; sobre o que faz, ou deveria fazer, parte da escola, e o que ultrapassa suas possibilidades de ação.
Vivemos em um mundo complexo, que passa por mudanças diversas. Não é raro, nesse contexto, que nos deparemos com situações difíceis no cotidiano da Educação Básica, as quais geralmente necessitam de respostas rápidas e assertivas – e que nem sempre temos. Na condição de docentes ou gestores, uma das constatações frente a demandas que necessitam ser emergencialmente resolvidas é que tais assuntos/temas deveriam ser tratados com a comunidade escolar. A impressão é que devem passar a fazer parte do currículo, sendo trabalhados pela escola de forma mais consistente– e, no mínimo, à médio prazo. Com isso, há uma tendência, ao que parece, de inflarmos a lista de conceitos, conteúdos, habilidades, hábitos e atitudes a serem trabalhados e desenvolvidos no espaço escolar, pela escola, e, no fim das contas, por nós professoras/es.
Diante disso, algumas vezes me pergunto qual é o real alcance da escola; quais são, como docentes e gestores da Educação Básica, nossas efetivas possibilidades de atuação e de contribuição no processo de formação dos sujeitos. Pergunto-me, também, o que é efetivamente escolar, ou, o que deveria, em nosso tempo, ser considerado “escolar”. Pergunto-me em que medida a função da escola já não se encontra inflada: socialização dos conhecimentos historicamente produzidos;trabalho com leitura, escrita, pensamento lógico-matemático, além de outras ciências e linguagens –história, geografia, artes, educação do corpo; o desenvolvimento das habilidades necessárias para pesquisar, descobrir, conhecer, interpretar, criticar, criar. Isso sem falar dos temas que cortam o currículo transversalmente, e que são inúmeros.
Lembro-me que essa inquietação ganhou novos elementos quando ouvi e li António Nóvoa discorrer sobre o que chama de escola transbordante. Em “O regresso dos professores”, por exemplo, Nóvoa trata um pouco disso, defendendo que a instituição escolar precisa passar por um processo de reestruturação, buscando um lugar mais modesto, com vistas ao que é especificamente escolar.
Essa ideia da escola transbordante pode colocar um pouco em xeque nossas “certezas” sobre a importância de que a instituição aproveite e incorpore em seu cotidiano aquilo que seus alunos e alunas sabem, gostam, demonstram interesse? Qual a dose, a medida, do uso do que as/os estudantes trazem e a transposição disso em tema articulador do trabalho docente? Em diversas situações e contextos escolares, o que parte do grupo de crianças define projetos a serem desenvolvidos durante um significativo período de tempo do ano letivo. Já fiz isso como professora, inclusive, e já contribui em projetos assim na condição de coordenadora pedagógica. Continuo achando, apesar das reflexões e dúvidas, que esse é o caminho, mas tenho me preocupado com o ponto de equilíbrio entre levar em conta os interesses e necessidades, de um lado, e garantir, de outro, que alguns conceitos, conteúdos, habilidades não deixem de ser contemplados pela escola – uma vez que possivelmente não seriam tratados em outra instituição social.
É a prerrogativa de levar em conta os diversos assuntos pelos quais alunas e alunos se interessam, articulando-os aos famosos conteúdos escolares, que tem feito a escola transbordar? É este alargamento do currículo, com base também nas inúmeras expectativas que socialmente são postas sobre o que a escola precisa “dar conta”, que causa esse transbordar? Estaríamos nós educadoras/es inflando a escola num movimento que acaba tendo como consequência uma perda de foco, talvez negligenciando aquilo que seria função da (e muitas vezes apenas da) escola? Na busca por sermos mais sensíveis, coerentes, abertos, estaríamos caindo em uma armadilha e perdendo de vista nosso papel e função?
Essas são questões que parecem importantes no debate sobre educação. Pode ser, inclusive, que não se apliquem, que não haja o tal transbordar tratado nesta reflexão. De todo modo, e inclusive se for essa a conclusão, há que se colocar o assunto em pauta, em tempos em que o currículo escolar é tem ano debate público. Reforma do Ensino Médio e discussão da Base Nacional Comum Curricular são, só para citar algumas, pautas que estão na agenda do dia. Resta perguntar: o que elas têm a ver com as indagações sobre o que deve ser considerado especificamente escolar, e sobre as funções e possibilidades de alcance da escola?
Elaine Teixeira Pereira
Florianópolis/Belo Horizonte, primavera de 2017