Uma das mais emblemáticas obras do século XX: Crônica da Casa Assassinada

Alexandre Azevedo

Joaquim Lúcio Cardoso Filho nasceu em 1913, na cidade de Curvelo, interior de Minas Gerais. Romancista, contista, poeta e teatrólogo, Lúcio Cardoso também se enveredou pelas artes plásticas e pelo cinema, interrompendo essas atividades somente quando sofreu um derrame cerebral que lhe dificultou os movimentos. Seis anos depois, em 1968, Lúcio Cardoso sofreu um segundo derrame, falecendo na cidade do Rio de Janeiro para onde fora ainda em sua juventude.

Crônica da casa assassinada, por sua estrutura inovadora e inventiva, em que há uma variedade de narradores, está ao lado de obras de autores do século XX que também saíram do “lugar-comum”, como Graciliano Ramos, Cornélio Penna, João Guimarães Rosa e Clarice Lispector, fazendo com que a literatura brasileira da época evoluísse consideravelmente. Crônica da casa assassinada é costurada como se fosse uma grande colcha de retalhos, isto é, por uma junção de depoimentos, como cartas, confissões, diários e narrativas de vários personagens, numa tentativa de esclarecer ao leitor os mistérios que cercavam e rondavam a chácara dos Meneses, tendo como fio condutor o relacionamento de Nina com os moradores da casa. Nessas narrativas, verdadeiros testemunhos angustiados, o leitor encontra os diários de André; as cartas de Nina a Valdo Meneses; as narrativas do farmacêutico; os diários de Betty; as narrativas do médico; as confissões de Ana; as cartas e depoimentos de Valdo Meneses; as narrações do padre Justino; as cartas de Nina ao Coronel; carta de Valdo ao padre Justino; os depoimentos do coronel; as memórias de Timóteo. Para ilustrarmos, peguemos a segunda parte do Diário de Betty, a empregada da casa dos Meneses, em que narra as suas primeiras impressões sobre a nova moradora, Nina, mulher de Valdo Meneses:

5- Desde que ela chegou, não temos mais um minuto de sossego. A todo instante quer alguma coisa e nunca está contente, queixando-se dos empregados, da casa, do clima, de tudo enfim, como se fôssemos culpados do que lhe acontece. Ainda não a vi em repouso, e creio que esta é uma atitude que lhe vai dificilmente. Está sempre caminhando de um lado para outro, fazendo alguma ou simplesmente imaginando o que fazer – o que lhe empresta um aspecto febril, não isento de hostilidade, que cria em toda a casa um ambiente de mal-estar e expectativa. Lá dentro as empregadas se queixam, cá fora a fisionomia dos patrões não é das mais animadoras (p.109).

Como já se sabe, o espaço central é a decadente chácara dos Meneses, situada em Vila Velha, sul de Minas Gerais. Na terceira narrativa do farmacêutico Aurélio dos Santos, o leitor tem uma boa noção do que era e do que é agora a casa dos Meneses. Note como a casa é personificada pelo farmacêutico, como alguém já tomado por um câncer:

(…) Na ausência do doutor, a escolha recaíra sobre mim: não havia na cidade ninguém mais credenciado. E acrescentou que eu desculpasse o incômodo, mas que ele não seria avaro na recompensa. Evidentemente sabia com quem estava falando, e esta promessa me animou um pouco. Enquanto dava essas explicações, conduziu-me à sala, e mais uma vez, com a curiosidade e o prazer que sempre havia me animado, e como se assistisse à demonstração de um espetáculo mágico, ia revendo aquele ambiente tão característico de família, com seus pesados móveis de vinhático ou de jacarandá, de qualidade antiga, e que denunciavam um passado ilustre, gerações de Meneses talvez mais singelos e mais calmos; agora, uma espécie de desordem, de relaxamento, abastardava aquelas qualidades primaciais. Mesmo assim era fácil perceber o que haviam sido, esses nobres da roça, com seus cristais que brilhavam mansamente na sombra, suas pratas semiempoeiradas que atestavam o esplendor desvanecido, seus marfins e suas opalinas – ah, respirava ali conforto, não havia dúvida, mas era apenas uma sobrevivência de coisas idas. Dir-se-ia, ante esse mundo que se ia desagregando, que um mal oculto o roía, como um tumor latente em suas entranhas (p.129).

Tendo como temas os relacionamentos familiares conflituosos, tais como: ódio, vingança, traições, invejas, incesto, acerto de contas, além da decadência (financeira e moral) da aristocracia rural mineira e a vida de aparências, como se pode perceber no trecho abaixo:

– Não vê o motivo? – e o riso do Sr. Demétrio, que ainda se prolongava como uma claridade pela sua face, apagou-se de repente. – Não vê? Pois olha, você sabe muito bem o que representamos: uma família arruinada do sul de Minas, que não tem mais gado em seus pastos, que vive de alugar esses pastos quando eles não estão secos, e não produz nada, absolutamente nada, para substituir rendas que se esgotaram há muito. Nossa única oportunidade é esperarmos desaparecer quietamente sob este teto, a menos que uma alma generosa – e ele fitou rapidamente a patroa – venha em nosso auxílio (p.56).

Crônica da casa assassina é, indubitavelmente, um romance de caráter introspectivo. Habilmente escrito por Lúcio Cardoso, que o leitor vai se envolvendo com a família Meneses a tal ponto que acaba também se tornando um dos moradores dessa enorme e decadente casa (mórbida e sombria), espécie de personificação da própria família que a habita. Fica aí, então, a dica!

Para saber mais
Cardoso, Lúcio. Casa da crônica assassinada, Círculo do Livro: São Paulo, 1979.


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