Por que Marc Bloch levantaria ao ver a Mangueira passar
Ana Luiza Jesus da Costa
A vitória do carnaval carioca de 2019 pela Estação Primeira de Mangueira com o enredo “História para ninar gente grande” foi emocionante. Como alguém que se identifica com as lutas do povo oprimido, tanto mais em um contexto tão adverso aos direitos sociais, à democracia e às perspectivas de sociedade justa e igualitária, me senti acalentada. Como historiadora de formação, me senti instigada. Como professora de história da educação, na Quarta-feira de Cinzas, decidi que não podia deixar de levar esse samba para as aulas da semana seguinte.
Por uma grata coincidência, o tema que abordaríamos em sala de aula seria “a importância da história na formação de educadores”. A bibliografia contava com o livro “A apologia da história. Ou o ofício do historiador” de Marc Bloch. Livro póstumo, escrito enquanto o historiador francês, fundador da “Nova História” esteve preso pela Gestapo por lutar na Resistência Francesa contra o nazismo. Um historiador que também se encontrava na luta, tempos atrás contra males conhecidos por nós – a intolerância, o autoritarismo, o racismo, o militarismo.
No campo da produção de conhecimento histórico, a luta de Bloch e outros colegas seus, LucienFebvre, em particular, se direcionou contra a chamada história positivista – aquela que apregoava a objetividade científica garantida pela “prova documental” como suposta reprodução do passado a partir da documentação escrita oficial produzida pelos Estados nação. Uma história que se fixava nos grandes feitos políticos e militares de homens das elites, “heróis emoldurados”.
Enquanto elaborava a aula, em um exercício de imaginação entre tempos e espaços longínquos, pude ver Marc Bloch sambar com a passagem da Mangueira na avenida. Não hesitaria em afirmar que “História para ninar gente grande” é um belo exemplo de “história problema” conforme defendia o medievalista francês. Dos porões dos navios negreiros aos porões da ditadura militar, a Mangueira propõe uma história “a partir de baixo”, das multidões, dos heróis de barracões. Marielle presente, ao lado de Luiza Mahin, mas também de tantas Marias anônimas.
Mangueira afirma por meio da cultura popular uma refinada crítica historiográfica à chamada “história oficial”, a do descobrimento, avesso da conquista e genocídio indígena; a da abolição pelas mãos da princesa, em lugar da luta dos escravizados pela liberdade.
Enquanto o coração militante era aquecido pelo samba, o cacoete do ofício fazia lembrar que a crítica feita pela Estação Primeira já é, há tempos, autocrítica da historiografia. A própria produção do enredo certamente contou com o serviço de pesquisas produzidas por historiadores e historiadoras dedicados a ler “a contrapelo” a história da sociedade escravista desde, pelo menos, os anos 1980. Trabalhos como o de Silvia Lara, Sidney Chalhoub entre outros pavimentaram caminhos críticos na academia e nas expressões culturais da sociedade. Difícil seria negar, porém, que se a historiografia tem, há algum tempo, se preocupado com as classes trabalhadoras, mulheres, negros e negras, indígenas, camponeses, essas versões ainda não chegaram a arrebatar os corações e mentes da maior parte da sociedade. Por isso é preciso reconhecer e celebrar o caráter político e educativo da cultura popular, da festa popular com todas as contradições que possam lhe perpassar.
Por mais que haja muita historiografia além da “história oficial” e que, nem todos os livros de história apaguem o protagonismo “dos de baixo”, vivemos tempos difíceis de revisionismo contra todo conhecimento científico progressista e de ofensiva contra toda história crítica acusada como “ideologia de esquerda” e “doutrinação”.
Mangueira veio, em 2019, disputar a memória e a história de um país imerso no autoritarismo, na violência real e simbólica, no desprezo justamente contra aquelas e aqueles oprimidos há 500 anos e venceu a disputa. Pôs o Rio de Janeiro, cujo atual governador compartilhou palanque com os homens que quebraram a placa de Marielle, e todo o Brasil a cantar honras às heroínas e heróis que “não estão no retrato” e isso não é, nem de longe, pouca coisa.
São tempos atormentados. Em tempos assim, cabe aos historiadores produzir a história crítica, que vá além da superfície dos acontecimentos e das vociferações nas redes sociais, apoiados nas ferramentas de seu ofício (teorias e técnicas), comprometidas/os com os problemas de seu tempo tal como propunha Bloch há 90 anos. Mangueira fez, magistralmente, seu trabalho. Historiadores, devemos fazer o nosso.
Imagem de destaque: Tomaz Silva/Agência Brasil
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