Um Diálogo Sobre o Suicídio

Confesso que me sinto incomodado ao abordar a temática suicídio, mas não tem nada a ver com o errôneo entendimento que leva o tema a ser, eventualmente, um tabu. Esse meu incômodo passa também pelo suposto problema dos chamados “meses coloridos” (outubro rosa, novembro roxo, etc.) que, muitas vezes, servem para “fazer cena” e expiar culpas, como aquele velho gesto da ida mecânica a missa aos domingos ou a celebração esvaziada do dia dos pais, que se transformam, muitas vezes, em eventos e ou business, compartimentalizando a vida e apaziguando a culpa e a angústia existencial.

Meu intento é que este escrito contribua para a permanência implicada de fazer do “setembro amarelo” (mês de prevenção ao suicídio) uma chamada de atenção, aprofundando as compreensões de maneira crítica e desdobrando em ações permanentes, criando outros mundos mais solidários… então cumpriremos autenticamente seu sentido.

A seguir, os passos deste texto atravessam a advertência, o diálogo, o mundo que vivemos e o tempo de catástrofe e sobrevivência.

Advertência
Bem, eu não sou um estudioso do suicídio. Eu sou um interessado pela vida e é por essa via que proponho um diálogo ao abordar a temática. De início, é importante frisar que o suicídio é polissêmico, multifatorial, podendo tocar as dimensões existenciais, sociais, históricas, culturais, religiosas e filosóficas. Sendo assim, estarei a abordar apenas alguns dos seus sentidos.

Uma outra precaução necessária quanto a essa temática é não adentrar em moralismos rasteiros ou contribuir com os modismos, transformando o tema em objeto de consumo. Afinal, nota-se agora muita gente falando (irresponsavelmente) sobre o assunto, instituições querendo fazer mesas redondas, rádios e TVs propondo entrevistas e programas etc. Mas até que ponto as pessoas estão dispostas a mudar suas vidas e suas relações, a tocar verdadeiramente nas questões cruciais que o suicídio desvela?

O diálogo
Para buscar um diálogo essencial sobre a temática é condição básica a compreensão, o não julgamento e a tomada de perspectivas diferentes. Eu gosto muito, por exemplo, da forma como Victor Frankl (1986) aborda a questão do sentido de vida. Frankl costumava dialogar com os pacientes que pensavam em se matar colocando a questão “por que não se matam”. Com isto, Frankl procurava inverter a perspectiva que levava uma pessoa a querer morrer para a perspectiva do que a fazia querer viver.

Penso que, antes de mais nada, devemos olhar para nós mesmos na mesma medida que olhamos para a pessoa que pratica ou pretende praticar o suicídio. Olhar para nós mesmos é criar uma visada para relação entre “o eu e o outro” e entre “parte e todo”. Em termos objetivos, isto significa ter menos um olhar patologizador, moralizador e mais um olhar compreensível em relação ao outro e a gente mesmo.  Significa ainda menos se perguntar por que ele se matou, o que tem ele de errado, o que tem ele de doente e como coitado é ele (e nesses casos nem perguntar). E mais o que temos nós de existência, o que estamos fazendo das nossas vidas.

Sem entrar na discussão de que foi errado ou correto, lembram da polêmica série 13 Reasons Why? As vidas daqueles adolescentes desvelavam vazios nas relações, instituições tecnizadas e indiferentes, relações parentais permissivas, autoritárias e negligentes.

Tomando uma visão mais ampliada, portanto, o suicídio deve ser visto como um sintoma, mas não um sintoma restrito a individualidade de um sujeito doente, patologizado, onde a doença estaria exclusivamente “dentro” da pessoa, mas um sintoma de uma existência que expressa, que desvela e que revela a qualidade de uma teia de relações, um sintoma de um mundo.

É claro que com isto não estou querendo dizer que devemos virar as costas para a pessoa que quer se matar ou para os efeitos bombásticos aos familiares e amigos de uma pessoa que se matou e só prestar atenção nessa “teia”. Todos merecem e devem ser cuidados. Importante é atinarmos para o sentido de cuidado e o que este tem a ver com abertura para o outro “ser sendo”, tanto no que diz respeito as individualidades das pessoas, como no modo de nos organizarmos socialmente e nos relacionarmos, construindo, portanto, o mundo.

O mundo que vivemos
Mas que mundo vivemos ou pelo menos quais marcas constituem nosso mundo?

Somos educados para sermos felizes, não sabendo lidar com dores e sofrimentos. Somos feitos para termos sempre estabilidade, termos sucesso, sermos altamente produtivos. Daí nos apavoramos quando as coisas saem do planejado e do controle.

Vivemos a era dos prozacs, das ritalinas, das neuroaeróbicas… É uma “sociedade do desempenho” que autoriza e maximiza o sujeito a produzir. Não importa o que, mas o que importa é produzir, eis o imperativo! É dessa forma que criamos uma sociedade de auto exploração – por isso as patologias atuais se configuram via a depressão, ansiedade, transtorno do humor, etc. O opressor agora é interno! Sucumbimos em uma sociedade do cansaço, como dirá o filósofo Byung-Chuk Ham (2017).

Temos informação, mas não temos mundo! E nós nos fazemos no mundo. E desse jeito asfixiamos o comum, o coletivo e a solidariedade. Nos falta mundo que nos permita sermos – Será o prelúdio de um fim?  (ZIZEK, 2012).

Ao falar de depressão, esta afeta 322 milhões de pessoas no mundo (dados da Organização Mundial de Saúde – OMS – de 2017). Em 10 anos, de 2005 a 2015, o número cresceu 18,4%, que corresponde a uma prevalência na população mundial de 4,4%.

O Brasil, por sua vez, apresenta 5,8% da sua população (são 11,5 milhões de brasileiros). Segundo a OMS, o Brasil é o país campeão em depressão da América Latina e o segundo com maior prevalência nas Américas.

Há alguma coisa errada no mundo e a ideia do Brasil ser um país de gente feliz e alegre parece ser um mito.

Uma coisa que parece óbvia é a quase incapacidade das pessoas lidarem com a frustração. Esta significa saber adiar a satisfação (ver o texto “Meu filho, você não merece nada”, de Eliane Brum). A questão dos limites, do aprender com o “não”, parecem ser pontos fundamentais nos processos educativos, mas que estamos, quiçá, descuidando.

Além da falta de limites, tendemos a esgarçar nossas relações e, consequentemente, acentuamos experiências de rompimento de vínculos (BOWLBY, 1997), podendo contribuir para desvitalização da vida.

O nosso mundo e a forma que educamos nossas crianças estão, de maneira geral, prenhes de permissividade, de negligência, de inversão de valores (onde ter é mais importante do que ser) e pela obstinada ideia de que “temos que ser felizes”, sobretudo pelo “olhar do outro”.

Sobrevivência em tempo de catástrofe
A vida é um milagre, diria Hanna Arendt (1989), e este milagre parece se perpetuar quando estamos em relação de reciprocidade com o outro. Nesse sentido, precisamos de mais “com – vivência” (MATURNA e VERDEN-ZÕLLER, 2004) e isso requer outras formas de estarmos no mundo, com o outro e também outro modo de lidarmos com o tempo, pois a pressa e a velocidade com que passamos pela Terra não nos permite estar com o outro de um modo apreciativo, recíproco e acolhedor.

Mas o que nos ensina esses sentidos trazidos acerca do suicídio? Qual a mensagem legada?! A sabedoria organísmica e o ajustamento criativo da sociedade do cansaço e do mundo enquanto vir a ser (STOEHR, 1999) apontam que vivemos uma situação demasiada crítica e que é necessário nos reinventarmos em termos de ser e de estar com o outro.

“Se não agora, quando? Se não a gente, quem?” (ditado talmúdico).

Referências

ARENDT, Hanna. A condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

BOWLBY, John. Formação e rompimento dos laços afetivos. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

FRANKL, Victor. Psicoterapia e sentido da vida. São Paulo: Quadrante, 1986.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ, Vozes, 2017

MATURANA, Humberto; VERDEN-ZÕLLER, Gerda. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano do patriarcado à democracia. São Paulo: Palas Athena, 2004.

STOEHR, Taylor. Aqui, ahora y lo que viene. Paul Goodman y la psicoterapia. Gestalt en tempos de crisis mundial. Santiago, Chile: Quatro Vientos, 1999. Gestalt en tempos de crisis mundial. Santiago, Chile: Quatro Vientos, 1999.

ZIZEK, Slavoj. Vivendo no m dos tempos. São Paulo : Boitempo , 2012.

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Um Diálogo Sobre o Suicídio

Marcelo Silva de Souza Ribeiro

 

Confesso que me sinto incomodado ao abordar a temática suicídio, mas não tem nada a ver com o errôneo entendimento que leva o tema a ser, eventualmente, um tabu. Esse meu incômodo passa também pelo suposto problema dos chamados “meses coloridos” (outubro rosa, novembro roxo, etc.) que, muitas vezes, servem para “fazer cena” e expiar culpas, como aquele velho gesto da ida mecânica a missa aos domingos ou a celebração esvaziada do dia dos pais, que se transformam, muitas vezes, em eventos e ou business, compartimentalizando a vida e apaziguando a culpa e a angústia existencial.

Meu intento é que este escrito contribua para a permanência implicada de fazer do “setembro amarelo” (mês de prevenção ao suicídio) uma chamada de atenção, aprofundando as compreensões de maneira crítica e desdobrando em ações permanentes, criando outros mundos mais solidários… então cumpriremos autenticamente seu sentido.

A seguir, os passos deste texto atravessam a advertência, o diálogo, o mundo que vivemos e o tempo de catástrofe e sobrevivência.

Advertência
Bem, eu não sou um estudioso do suicídio. Eu sou um interessado pela vida e é por essa via que proponho um diálogo ao abordar a temática. De início, é importante frisar que o suicídio é polissêmico, multifatorial, podendo tocar as dimensões existenciais, sociais, históricas, culturais, religiosas e filosóficas. Sendo assim, estarei a abordar apenas alguns dos seus sentidos.

Uma outra precaução necessária quanto a essa temática é não adentrar em moralismos rasteiros ou contribuir com os modismos, transformando o tema em objeto de consumo. Afinal, nota-se agora muita gente falando (irresponsavelmente) sobre o assunto, instituições querendo fazer mesas redondas, rádios e TVs propondo entrevistas e programas etc. Mas até que ponto as pessoas estão dispostas a mudar suas vidas e suas relações, a tocar verdadeiramente nas questões cruciais que o suicídio desvela?

O diálogo
Para buscar um diálogo essencial sobre a temática é condição básica a compreensão, o não julgamento e a tomada de perspectivas diferentes. Eu gosto muito, por exemplo, da forma como Victor Frankl (1986) aborda a questão do sentido de vida. Frankl costumava dialogar com os pacientes que pensavam em se matar colocando a questão “por que não se matam”. Com isto, Frankl procurava inverter a perspectiva que levava uma pessoa a querer morrer para a perspectiva do que a fazia querer viver.

Penso que, antes de mais nada, devemos olhar para nós mesmos na mesma medida que olhamos para a pessoa que pratica ou pretende praticar o suicídio. Olhar para nós mesmos é criar uma visada para relação entre “o eu e o outro” e entre “parte e todo”. Em termos objetivos, isto significa ter menos um olhar patologizador, moralizador e mais um olhar compreensível em relação ao outro e a gente mesmo.  Significa ainda menos se perguntar por que ele se matou, o que tem ele de errado, o que tem ele de doente e como coitado é ele (e nesses casos nem perguntar). E mais o que temos nós de existência, o que estamos fazendo das nossas vidas.

Sem entrar na discussão de que foi errado ou correto, lembram da polêmica série 13 Reasons Why? As vidas daqueles adolescentes desvelavam vazios nas relações, instituições tecnizadas e indiferentes, relações parentais permissivas, autoritárias e negligentes.

Tomando uma visão mais ampliada, portanto, o suicídio deve ser visto como um sintoma, mas não um sintoma restrito a individualidade de um sujeito doente, patologizado, onde a doença estaria exclusivamente “dentro” da pessoa, mas um sintoma de uma existência que expressa, que desvela e que revela a qualidade de uma teia de relações, um sintoma de um mundo.

É claro que com isto não estou querendo dizer que devemos virar as costas para a pessoa que quer se matar ou para os efeitos bombásticos aos familiares e amigos de uma pessoa que se matou e só prestar atenção nessa “teia”. Todos merecem e devem ser cuidados. Importante é atinarmos para o sentido de cuidado e o que este tem a ver com abertura para o outro “ser sendo”, tanto no que diz respeito as individualidades das pessoas, como no modo de nos organizarmos socialmente e nos relacionarmos, construindo, portanto, o mundo.

O mundo que vivemos
Mas que mundo vivemos ou pelo menos quais marcas constituem nosso mundo?

Somos educados para sermos felizes, não sabendo lidar com dores e sofrimentos. Somos feitos para termos sempre estabilidade, termos sucesso, sermos altamente produtivos. Daí nos apavoramos quando as coisas saem do planejado e do controle.

Vivemos a era dos prozacs, das ritalinas, das neuroaeróbicas… É uma “sociedade do desempenho” que autoriza e maximiza o sujeito a produzir. Não importa o que, mas o que importa é produzir, eis o imperativo! É dessa forma que criamos uma sociedade de auto exploração – por isso as patologias atuais se configuram via a depressão, ansiedade, transtorno do humor, etc. O opressor agora é interno! Sucumbimos em uma sociedade do cansaço, como dirá o filósofo Byung-Chuk Ham (2017).

Temos informação, mas não temos mundo! E nós nos fazemos no mundo. E desse jeito asfixiamos o comum, o coletivo e a solidariedade. Nos falta mundo que nos permita sermos – Será o prelúdio de um fim?  (ZIZEK, 2012).

Ao falar de depressão, esta afeta 322 milhões de pessoas no mundo (dados da Organização Mundial de Saúde – OMS – de 2017). Em 10 anos, de 2005 a 2015, o número cresceu 18,4%, que corresponde a uma prevalência na população mundial de 4,4%.

O Brasil, por sua vez, apresenta 5,8% da sua população (são 11,5 milhões de brasileiros). Segundo a OMS, o Brasil é o país campeão em depressão da América Latina e o segundo com maior prevalência nas Américas.

Há alguma coisa errada no mundo e a ideia do Brasil ser um país de gente feliz e alegre parece ser um mito.

Uma coisa que parece óbvia é a quase incapacidade das pessoas lidarem com a frustração. Esta significa saber adiar a satisfação (ver o texto “Meu filho, você não merece nada”, de Eliane Brum). A questão dos limites, do aprender com o “não”, parecem ser pontos fundamentais nos processos educativos, mas que estamos, quiçá, descuidando.

Além da falta de limites, tendemos a esgarçar nossas relações e, consequentemente, acentuamos experiências de rompimento de vínculos (BOWLBY, 1997), podendo contribuir para desvitalização da vida.

O nosso mundo e a forma que educamos nossas crianças estão, de maneira geral, prenhes de permissividade, de negligência, de inversão de valores (onde ter é mais importante do que ser) e pela obstinada ideia de que “temos que ser felizes”, sobretudo pelo “olhar do outro”.

Sobrevivência em tempo de catástrofe
A vida é um milagre, diria Hanna Arendt (1989), e este milagre parece se perpetuar quando estamos em relação de reciprocidade com o outro. Nesse sentido, precisamos de mais “com – vivência” (MATURNA e VERDEN-ZÕLLER, 2004) e isso requer outras formas de estarmos no mundo, com o outro e também outro modo de lidarmos com o tempo, pois a pressa e a velocidade com que passamos pela Terra não nos permite estar com o outro de um modo apreciativo, recíproco e acolhedor.

Mas o que nos ensina esses sentidos trazidos acerca do suicídio? Qual a mensagem legada?! A sabedoria organísmica e o ajustamento criativo da sociedade do cansaço e do mundo enquanto vir a ser (STOEHR, 1999) apontam que vivemos uma situação demasiada crítica e que é necessário nos reinventarmos em termos de ser e de estar com o outro.

“Se não agora, quando? Se não a gente, quem?” (ditado talmúdico).

Referências

ARENDT, Hanna. A condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

BOWLBY, John. Formação e rompimento dos laços afetivos. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

FRANKL, Victor. Psicoterapia e sentido da vida. São Paulo: Quadrante, 1986.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ, Vozes, 2017

MATURANA, Humberto; VERDEN-ZÕLLER, Gerda. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano do patriarcado à democracia. São Paulo: Palas Athena, 2004.

STOEHR, Taylor. Aqui, ahora y lo que viene. Paul Goodman y la psicoterapia. Gestalt en tempos de crisis mundial. Santiago, Chile: Quatro Vientos, 1999. Gestalt en tempos de crisis mundial. Santiago, Chile: Quatro Vientos, 1999.

ZIZEK, Slavoj. Vivendo no m dos tempos. São Paulo : Boitempo , 2012.

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