Trabalho docente em comunidades empobrecidas e os desafios do ensino remoto.

Flávio Gonçalves de Oliveira1

Renata Duarte Simões

A pandemia do novo Coronavírus (Covid-19) agudizou as contradições presentes na escola pública brasileira e trouxe, para o centro do debate, a precarização do trabalho docente e o controverso ensino remoto. Ainda que a problemática pareça ter adquirido nova roupagem, os territórios escolares, situados em comunidades empobrecidas, já vinham sendo impactados pelas políticas neoliberais que, embaladas pela lógica da austeridade fiscal, têm resultado em parcos recursos no campo das políticas públicas educacionais, na carência de investimentos na infraestrutura das escolas e na desvalorização, cada vez mais acentuada, do trabalho docente. 

Esse cenário já se desenhava desde 2016, quando ocorreu o retorno explícito da agenda ultraliberal no país, sendo a educação uma das principais áreas atingidas. Os ataques à educação pública ficaram mais evidentes com a Emenda 95, que abalou as estruturas básicas de toda uma rede de proteção social consagrada na Constituição Federal de 1988 e atingiu, drasticamente, vários direitos sociais básicos, entre eles, o direito à educação pública, gratuita e de qualidade. 

Na prática, a promulgação da Emenda representou o rompimento com determinadas obrigações do Estado brasileiro na área social, congelou investimentos em setores cruciais, como educação e saúde, e enfraqueceu as políticas sociais até então em curso. Assim, o desmantelamento da educação pública já estava posto nos anos anteriores à pandemia e foi ainda mais agravado por ela. Em face disso, o cenário pandêmico desvela um fenômeno já vivenciado, cotidianamente, nos contextos escolares, em comunidades empobrecidas, expõe as contradições geradas pelo capitalismo para justificar os cortes nas políticas sociais, legitima os mecanismos de desvalorização dos trabalhadores e denuncia a escandalosa concentração de riqueza e boicote às medidas que possam corrigir as desigualdades sociais. 

Essa perspectiva tem contribuído para a precarização do trabalho docente e negado aos estudantes em situação de pobreza e extrema pobreza o acesso ao conhecimento, já que o alcance do ensino remoto nas comunidades empobrecidas apresenta-se deficitário, dada a intensa exclusão digital que é mais uma face do processo de exclusão social. Em muitos casos, o trabalho docente via ensino remoto ficou reduzido a um mecanismo burocrático e não atingiu a função pedagógica e social. 

O ensino remoto emergencial surgiu de uma situação calamitosa, em que docentes não foram adequadamente capacitados para a utilização das ferramentas necessárias a essa modalidade, pois tais recursos frequentemente estão ausentes das escolas ou, quando existem, estão em condições inadequadas para uso ou são obsoletos diante das demandas exigidas. Além disso, nota-se a inaptidão de muitos docentes em relação ao uso desses dispositivos de ensino, ao manuseio de artefatos tecnológicos. Em relação aos estudantes, serviu basicamente para manter o vínculo com a escola, evitando a evasão em massa. Contudo, quanto à apropriação do conhecimento, é uma ferramenta limitada, tendo em vista que a maioria dos alunos não tem acesso à internet e nem dispõe de recursos básicos para a navegação em rede.

A saúde dos docentes também foi afetada no aspecto psíquico e emocional, principalmente com o agravamento de quadros de ansiedade, estado de pânico e comportamentos depressivos, gerando o afastamento de muitos profissionais de suas atividades. A preocupação em manter o emprego diante de um cenário de crise, as incertezas diante da possibilidade de um retorno sem garantias sanitárias e, sobretudo, a pressão das secretarias de educação e dos órgãos gestores serviram de gatilho para o adoecimento de muitos docentes. 

Do que foi vivido e observado até o momento, fica explícito que as contradições presentes na escola pública brasileira e escancaradas pela pandemia são sentidas, cotidianamente, pelos atores que transitam nos espaços escolares em contextos empobrecidos. O cenário pandêmico expõe aquilo que estava ali, presente o tempo todo, mas escondido ou camuflado sob o aspecto da pseudo normalidade.  É possível constatar, ainda, que o chamado ensino remoto não trouxe ganhos significativos ao processo educativo ou escolar dos alunos empobrecidos, já que a exclusão digital nessas comunidades é impeditiva do direito à informação e ao conhecimento. 

Por fim, evidencia-se o total despreparo das secretarias de educação, órgãos gestores e afins no enfrentamento das adversidades escancaradas pela pandemia do novo Coronavírus, já que não continham, entre seus quadros, uma equipe de educação e tecnologia qualificada e apta a oferecer aos professores processos formativos adequados para o manuseio das ferramentas necessárias ao ensino remoto, gerando insegurança e ansiedade naqueles que se viram reféns dessas alternativas.

 

1Professor da Rede Municipal de Cariacica-ES, lotado na EMEF “Ayrton Senna” e vinculado ao Grupo de Estudos em Educação, Pobreza e Desigualdade Social (GEEPDS/Ufes). 


Imagem de destaque: Jaime Souzza / Instituto Ayrton Senna

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