Tivemos tempo suficiente, já chega

Wojciech Andrzej Kulesza

Dezembro, o ano acabando, convida-nos a fazer um balanço da educação em 2020. À memória, logo me vem o clássico livro de Maria José Garcia Werebe, Grandezas e Misérias do Ensino no Brasil, lançado em 1963 na esteira da atribulada aprovação da Lei de Diretrizes e Bases no final de 1961. Acreditando na mudança, para melhor, propiciada pela lei, a educadora nos oferecia neste livro uma avaliação diagnóstica do conjunto da educação brasileira em todos os seus níveis e graus para nos instrumentar para a ação.

A publicação de sucessivas edições da obra nos anos seguintes, algumas com os números da educação atualizados, foi minguando à medida que se aprofundava no país a onda conservadora que desestimulava qualquer mudança no sentido apontado pelo livro de Maria. O mesmo governo militar que a havia obrigado a se exilar, ao aprofundar ainda mais as mazelas do nosso sistema educacional, tornava seu diagnóstico inoperante. Com as esperanças renovadas com o fim da ditadura, retomou-se a discussão da problemática educacional e uma nova edição viria àluz em 1986.

Em 1994, quando tomava corpo a discussão que redundaria na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada em 1996, a autora, ainda no exílio, onde findaria por falecer anos depois, publicaria uma nova edição totalmente refundida, já que, segundo ela “não era possível atualizar apenas os dados estatísticos”.

Das versões anteriores somente o título seria conservado, acrescido da chamada “30 anos depois”, ou seja, para ela “grandezas e misérias” ainda continuavam sendo categorias fundamentais para caracterizar a situação da educação brasileira naquele momento. Ainda hoje essas mesmas categorias, com menos grandezas e muito mais misérias, são frequentemente utilizadas quando se fala sobre a educação no país. Todavia, nos parece totalmente anacrônico descrever a situação do nosso ensino dessa maneira, ou seja, se fosse viva, Maria certamente não reeditaria sua obra.

Estruturado segundo a sociologia da educação característica dos anos de 1960, com suas séries empíricas de variáveis educacionais retiradas da própria estrutura e funcionamento do ensino cotejadas com os dados socioeconômicos que ordenavam a economia do país, o livro tem um alcance limitado para descrever o que se passa com nossa educação.

Novas variáveis educacionais, criadas pelos pesquisadores, dentre as quais avultam aquelas procedentes de instrumentos de avaliação, como a grande diversidade de exames e testes, ou oriundas de novos enfoques históricos e antropológicos da escola, como as histórias de vida, enriqueceram sobremaneira o instrumental analítico disponível para traçar com nitidez e profundidade um retrato da atual educação no Brasil. As desigualdades existentes na educação brasileira apontadas no livro de Maria podem agora ser percebidas mais claramente olhando essas novas fontes de dados, especialmente no que tange às diferenças na escolarização relacionadas com as classes sociais, gêneros e etnias.

Entretanto, as grandezas, significando a monumentalidade de nossos projetos educacionais ou o quantitativo de nossas estatísticas escolares, junto com as misérias presentes nas nossas escolas e nas condições de trabalho a que os profissionais da educação estão sujeitos, continuam a se destacar em nosso panorama educacional. Na verdade, a política educacional antidemocrática e desastrada do atual governo tem contribuído para piorar os indicadores de qualidade da nossa educação em todos os níveis e acentuar nossas desventuras.

Todo o tempo, em todo lugar, somos obrigados a combater as iniciativas governamentais destinadas a barrar os avanços conseguidos em direção à superação de nossas misérias e ao deleite de nossas grandezas. Não fosse a pandemia, que nos obriga a lutar por meios virtuais, essas mobilizações estariam hoje ecoando espetacularmente nossas vozes pelas ruas e praças de nossas cidades.

Há sim uma clara intenção de destruir a escola pública e gratuita, não só, mas também, para favorecer as escolas privadas, cada vez mais administradas por empresas que consideram o ensino apenas mais uma mercadoria valiosa existente no mercado. Para isso não é preciso cerrar as portas das escolas públicas. Basta continuar a pagar os míseros salários atualmente em vigor, contratar pessoal precariamente, prover as escolas de materiais didáticos defasados ou insuficientes, deixar abandonado o espaço físico e tudo o mais que caracteriza a maioria de nossas escolas públicas. Deste modo, será inviabilizada a correção das desigualdades prometida pela escola pública e os “bem dotados”, “os bem aquinhoados”, “os competentes” migrarão rapidamente para as escolas privadas, onde serão recebidos de braços abertos. Por que o governo não privatiza o exército, as forças armadas? Por que não têm valor?

Este 2020 que finda, marcado pela pandemia do Corona vírus, foi um ano letivo perdido segundo a pedagogia tradicional. De fato, se pensarmos a escola apenas como transmissora de conteúdos e reprodutora de valores, pouco se avançou. Por isso mesmo, ninguém será reprovado, todos passarão de ano, porque simplesmente não há nada para provar (ainda que o ENEM esteja aí batendo em nossas portas).

Apesar disso, aprendemos muito. Graças a uma pedagogia que se impõe, porque lida com a nossa própria vida, enfrentamos um bocado de situações-problema, resolvemos com sucesso problemas cabeludos e adquirimos habilidades e competências em coisas que nunca havíamos imaginado. Digam o que quiserem deste ano, ele nos fez refletir e agir de acordo com uma pedagogia tão significativa para nós que, com certeza, fará com que a educação seja mais autêntica em 2021.


Imagem de destaque: Estudantes e Trabalhadores protestam em Curitiba contra a Reforma da Previdência e os cortes na educação. Foto: Gibran Mendes.

 

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