Sombras – recorte de uma realidade adulterada

Ivane Laurete Perotti

Sobre o curral, caía a tarde. Chuva e vento acompanhavam o declínio. Seria nostálgico não fosse o inusitado delírio. Palpável demência levava à breca o rebanho agrupado. Breca, doença que provoca a perda de pelos entre os caprinos, avançara sobre o gado. Especialistas aventavam nudez permanente. Irreversível. Outros, acreditavam no combate à doença através de terapias de choque. Sem consenso à cura, viam-se os animais em estado de exposição total.  As intempéries do contexto criado avolumando-se sobre os lombos descobertos. Hirsutos de nascimento, apresentavam-se em pele – couro. Pelados, perambulavam a esmo, produzindo toda a sorte de manifestações: relinchos, gritos, grunhidos, balidos, zurros, berros, bodejos. Bordejos ao deus dará! Lastimável! Lamentáveis!

Úmidos bufos agarravam-se ao anúncio da noite.  Quentes bafos. Pegajosas babas. Salivas do desespero. A perda da pelagem enlouquecia o gado. Acostumados a regalias, negavam-se à adaptação. Comunicavam histerias. Físicas. Mentais. Patas em galope. Marchas alucinadas. Cascos roçando o inominável. Inevitável!

À visão daquele quadro associava-se o desvario dos cavalos de Diómedes. Disseminadores do terror, tais equinos terminaram capturados pela valentia e coragem de Héracles, o Hércules dos ocidentais. Para além daqueles, este gado, assolado pela nudez fúlgida, ainda personificava Manias, espírito de loucura, de insanidade; companheira de Coalemos, a estupidez. Bizarrias e incompletudes devastadoras. A realidade do estábulo rompia-se em fragmentos. Viam tão somente o que desejavam ver: não se viam. Nus. Desmerecidos. Desapercebidos.

Estilhaços. Gás lacrimogênio. Balas de borracha. As tentativas de contenção protocolar perdiam para os arroubos da loucura. Ignorâncias. Especialistas creditavam os sintomas ao mais grave dos distúrbios: manipulação. Patrocínio capital. Crimes praticados à sombra da lei. Contaminação regulada à breca. Grana. Bufunfa! Dinheiro. churrasquinhos. E banheiros unissex.

Tanto foi, tanto cresceu a histeria que, o cercado, antes regulado pela trama das mentiras, rompeu-se. Desceu ao lume da lama. Cavernoso sismo! Placas de corrupta cancela. Foram-se, pelados. Um dia, peludos. Despidos de controle, invadiram urbanidades. E o mundo assistiu ao beijo lingual entre Coalemos e Manias.  Paixão viril promovida pela estupidez e a insanidade. Passantes tomavam-se de riso para aliviar o constrangimento. Perplexidade e vergonha alheia, alternavam-se. De um tudo se via. Cortejos arrastando nádegas. Joelhos, lágrimas, e outras partes não tão apropriadas à exposição, deitavam asfalto. Choros e velas. Estranhas orações. Urros. Conclamações! “Quico! Quico! Quico! Venha até nós! Quico! Quico! Quico! Não abandone o seu gado!”. Juravam alguns que o rebanho representava um antigo programa televisivo, dada a ordem das rimas e das parecenças fonéticas. Melhor seria que assim fosse. Não era. Médicos, xamãs, curandeiros, veterinários, curiosos e interessados no fato elaboravam prognósticos. Doença terminal. Cognição alterada. Morte do “eu”. Sombras de um colapso grupal. Animal. Crime!

Enquanto isso, o Quico, aclamado dentro e fora da estrebaria, performava silêncios planejados à broca. Boca, apenas para as impropriedades. Tergiversava sentimentos inexistentes. Erisipela na pleura do vazio interno.  Duas aparições em rede. Resultado: o gado entendeu-se entendido! Teceduras de impossível teoria comunicativa invadiu o rebanho. Quico falava em códigos. Palavras à parmegiana.  Antepastos. Sobremesas. Números místicos. Anúncios. Aboios aos aboiados.

O gado, despelado, levantou bandeiras em desrespeitosas combinações. Urinou em público. Batizou banheiros… sempre unissex. Repetiu o repetido. Síndrome de papagaio. Maritacas. Encenou reprimidas volúpias bélicas. E na dormência dos sentidos, levantou defesas, como as que ouvi na carestia das ciências e das leis. Inconsistências:

_ É de direito berrar e bufar!  Não é de Lula que vive o povo.

_ Nem só de carne vive o mito! De whisky e bons vinhos também.

_ Sacrifício! Sacrifício! O rebanho está em lucros!

_ Elite, mais que tardia… proveis a nossa liberdade!

_ Gado inofensivo é gado morto! Levantem a cauda, capotaria.

A lógica pecuarista, por detrás do estouro da boiada, incitava a doença. O gado esperava milagres. Ao agro! Ao agro! Ogros. Um aceno do alto. Um brado: “eu fico!”. Mico! Intervenção divina. Patavinas! Força miliciana. Guarnição. Tropas. Ordens do dito! Quico!… esperavam na chuva. À chuva. Ao vento. Relento. Vendaval. Os pecuaristas pagavam os sacrifícios. Empresários. Dromedários. Bloqueio de estradas. Vias. Caminhões. Patrocinadores não movem as palhas do leito. Conceito de proteção. Pessoal e intransferível. Investimento social.

A noite caiu sem dó. No escuro estavam, no escuro permaneceram. O rebanho dos ex-peludos marchava ladeira abaixo. Até o momento de fecharmos esta escrita, não havia notícia sobre possível cura. Nem cloroquina. Nem ivermectina. A parasitologia investiga, mas o volume crescente da matéria fecal tem dificultado a pesquisa. Questão de saúde pública?  Questão de perspectiva: sombras são recortes de si. Indivisíveis. Não ficcionais. Projetadas no espelho do real. Adúlteras são as visões distorcidas, fragmentadas, manipuladas no umbigo do poder. Capital.


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