Do lado de fora da grande janela, fechava-se a primeira escuridão da noite. A primeira. Viriam outras, como guizo de cobra em novelos de bote. Tremeluziam pavores. Transpiravam. Cansaços. Sobre o braço da poltrona pendiam pensamentos. Ali. À mão. Soltos pela sala elegante a disfarçar alentos. Mira calculada dos spots redondos. Direção. Foco. Inclinação. Dependurados. Aranhas fluorescentes. Vendia-se ilusão de aconchego. Tom de esteja à vontade. Não estava. Os feixes de luz conversavam amenidades. Tudo ficaria bem. Não ficaria. As luzes fofocavam. Coisas da noite esparramando-se, abelhudas. Estendendo tapetes à mão. Aos pés. Música para coçar dissabores. Irritante. Suavidade controlada. Em notas. Dinheiro vivo. Seguro. Contrato. Saúde. Uma zona!
_ O senhor pode entrar.
Zuniu pelas memórias de voz aquele som incômodo. Repetitivo. Doce demais. Demasiadamente doce. Mas que p… a! O silêncio é conquista. A quem de direito? A voz. Os braços gotejando pensamentos. Aranhas sugando a noite. Teias de embalar cadáveres. Aveludadas. As teias. Olhos de compaixão. Morte à noite. Um toque de mão. Gelada. Lenta. Entrou.
_ Então, como está o senhor no dia de hoje? – o psiquiatra cortava a boca com a negação de um sorriso. O bigode riscado parecendo sujeira de boteco. Mesa pesada. Distância das dores. Alheias. Próprias. Limites para o juízo final.
_ Como em todos os outros dias! – do ovo nascera o mito. Da caverna brotara a voz. Do carneiro, a lã chegara ao tapete. Bege. Talvez sujo. Ou creme. Talvez líquido.
_ E como é isso
Isso o quê? Perguntas. Retórica. Óbvio! Ele recebia para fazer perguntas. Notas. Em pilhas. Sempre perguntas. Nenhuma resposta.
_ E então, o que o senhor me responde?
_ Não volto à escola.
_ Nós já conversamos sobre isso, lembra-se?
Lembra-se? Quem, no côncavo da escuridão ainda usava esse…essa pronominalização? Hipercorreção. Distanciamento calculado. Arrogante! Desconhecia a vida. Amortecia conhecimentos. Entrava nas cabeças moribundas. Sem interação. Longe do que conhecera na vida da escola. Escola na vida. Agora… morrendo de esquecimentos.
_ Bom! Não volto porque estou morrendo. Sejamos diretos, por favor.
_ Certo! Morrer é uma contingência da vida!
Sério? Seria assim? Que sentasse em seus glóbulos e assumisse a cadeira. Infame! A primeira investida da noite juntava garras. Frieza cruel. Sentia maior paz na iminência da morte do que na evidência. Minguada. Surrupiada por uma dedicação doentia. Trabalhara sem folga. Sem faltas. Na falta
_ Então, os seus pensamentos evoluíram?
Para onde? Para as profundezas dos cinco infernos? Cérbero se fizera cativo. Trocavam carícias. Vai Totó! Vem Totó! Coisas do tipo. Não! Energúmeno de calças. De seda italiana. Bigode de rato. Cabeça de pato. Boa rima. Faltava rir no meio da batalha. Princípio de uma noite descabeçada.
_ Então, os meus pensamentos platinam à luz das sombras. O de sempre!
_ Não evoluímos!
Por que o Dito insistia em usar o “nós”? Era elezinho que estava morrendo. De quem o governo cortara o pagamento. Indevido! Permanecera preso por dois messes à cama dos sonhos sensuais. Fatais. Vomitando. Fedendo. Podre e pobre. E dois meses doente era um ônus pesado para o estado. Demais! Não melhorou? Não? Então toma, seu fdp! Tomou. Tarde tomou consciência do quanto valeram os seus anos ininterruptos de dedicação. Engasgou. Choraria na frente daquela besta de fraque? Nada mais lhe faltava. Sem sobras, dobrava-se às dores que comiam as últimas forças.
_ O senhor, eu não sei. Mas eu, eu evoluí na direção do nada. “Nonada!”
_ Hum!? Excelente figura!
Execrável. Não leu ironia. Calva besta. Mais tarde pediria desculpas ao Rosa. Afinal, aquele ali teria passado longe das boas leituras. Ah! Se lhe tivesse caído às mãos! Aprenderia a reconhecer figuras. Se aprenderia. Inepto. Boçal!
_ E, que outras figuras lhe povoam a mente?
Hum! Muitas! O desejo de costurar o talho abaixo de seu bigode! Amarrar cada fio dessa piada aos pelos do… É! Estariam longe. Mas ainda assim, se pudesse dizer tudo o que faria. Juntaria o seu norte careca e o sul fedorento ao Trópico de Capricórnio. Pé na boca. Mão no…
_ O senhor está pouco falante hoje!
E quando fora de falar muito? Ventriloquismo tardio. Sentiu a dor atravessá-lo como lâmina afiada em fogo intenso. Respirou fundo. Temendo que o outro tomasse o suor por lágrimas, levantou-se de um só golpe.
_ Não terminamos!
_ Não começamos! O senhor não sabe quem sou. Sou o nada de uma sessão de vazios. Seus olhos não me conhecem. Seu bigode sobe e desce. Sua careca supera o plano das luzes. Sua sala cheira penas de sonhos. A sua vida deve ser pior do que a minha. Eu vou morrer. Você terá de aguentar a si mesmo por mais tempo. Para nunca mais ver, seu doutor.
A noite aguardava. Sem salário. Sem escola. Esquecido e quase defunto. Sem um tostão. O abrigo das almas chamava Cérbero. Aqui! Aqui jaz um professor. Não morreria sem concluir a releitura de Sagarana. Por lá se encontrava a coragem. A miserabilidade de um ofício e a ironia fina abrindo valas. Covas. Quando finda a tristeza, daria mão ao Guima. Até lá, melhor a literatura para começar a segunda escuridão.
Nota
*Baseado em história real.
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