Michele Lopes
José Heleno Ferreira
Em um tempo não muito distante, existia um monstro chamado de “bicho-papão”. De aparência horripilante, escondia-se no quarto das crianças teimosas para assustá-las no meio da noite. Conta a lenda que comiam crianças desobedientes e mentirosas, causando terror e choradeira na hora de dormir.
Atualmente, as crianças deixaram de acreditar no “bicho-papão”. Mas o monstro sofreu mutações e se adaptou ao novo tempo. O bicho-papão moderno não se esconde mais no escuro, perdeu toda vergonha de exibir sua forma grotesca e sua feiura existencial. Ao contrário, busca constantemente mostrar-se, ser visto e ouvido. Exibem-se aos bandos, à luz do dia, com suas couraças amarelas. Comunicam-se com constantes grunhidos, ameaças e agressões.
Não comem mais crianças teimosas e mentirosas, pois sobrevivem da mentira. Acéfalos, alimentam-se dos sonhos e pensamentos. Alheios ao conhecimento, devoram liberdades. Não se interessam mais em assustar durante o sono, procuram as pessoas que estão alertas, aterrorizando-as em nome de Deus ou de qualquer outra verdade (por eles) estabelecida. Tudo podem, são cidadãos de bem! Matam, roubam, abusam e ferem.
Quanto maior a ignorância, maior ficam, por isso detestam as ciências, os livros, a arte, os fatos e os dados. Até mesmo as vacinas. Procriam-se rapidamente através de fake news, sermões e negociatas. Infiltraram-se em incontáveis instituições e serviços que deveriam garantir, promover e proteger, mas violam direitos através da falácia da defesa da moral e dos bons costumes, da segurança. Sobrevivem da miséria, da desgraça, da desesperança, da desigualdade e do medo. Ganharam força e espaço. Restabeleceram o terror!
Resta às crianças o medo cruel e real. Medo da morte, da fome, da violência, da falta de oportunidades. Medo de ser diferente, de amar diferente, de pensar diferente daquilo que o “bicho-papão” estabelece. Medo de viver e sonhar! E numa sociedade doente, nossas crianças choram, escondem-se, se automutilam, se isolam, se autoexterminam, matam e morrem…
Como não poderia deixar de ser, todo este contexto de violência e de violação de direitos interfere no cotidiano escolar. A escola, instituição que tem papel fundamental no processo de formação de crianças e de adolescentes, convive com as consequências de uma sociedade na qual meninos e meninas são vítimas da violência e recebem uma formação para agir de forma violenta.
Pesquisa realizada pela PUC-RS, em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), buscou compreender os efeitos da violência no cérebro de crianças de 10 a 12 anos. De acordo com Augusto Buchweitz, que coordenou este trabalho, a exposição constante à violência tem efeito negativo na capacidade de sentir empatia. O cérebro, constantemente exposto à violência, não responde quando precisa decidir sobre sentimentos de outras pessoas. Numa situação de alerta para garantir a sobrevivência, a outra pessoa não importa – ou tem menos importância.
Os inúmeros casos de violência ocorridos nas escolas parecem confirmar os resultados da pesquisa. E diante destes casos é cada vez mais constante a presença de profissionais de segurança dentro das escolas. No entanto, esta é uma questão delicada… Qual é o papel das forças de segurança dentro das escolas?
Acreditamos – considerando a natureza do processo educacional – que é necessário ter cautela quanto a interferências externas no ambiente escolar. As forças de segurança, quando acionadas, precisam estar a serviço da proteção diante de ameaças externas e não de conflitos entre os sujeitos que compõem a comunidade escolar. Afinal, a escola é um espaço de aprendizagem e faz-se necessário também aprender a lidar com os conflitos, a mediá-los, a construir processos de diálogo que possam superá-los.
Não se trata de tarefa simples. Mas sempre que a escola abre mão de mediar um conflito está também abrindo mão de exercer seu papel educativo.
Nesta história de terror e de “bichos-papões”, muitas perguntas precisam ser feitas. Muitas respostas precisam ser construídas. De quem é a responsabilidade de proteger os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, coletivos de todas as crianças e os adolescentes em sua integralidade? Como garantir que sejam respeitados como sujeitos de direitos e que sejam tratadas conforme sua condição peculiar de desenvolvimento? Quem colocará as crianças e os adolescentes a salvo das ameaças desse temido “bicho-papão”? Como garantir também os direitos das pessoas adultas que trabalham cotidianamente nas escolas?
Neste tempo difícil, em que tantas pessoas se sentem perdidas, e crianças e adolescentes, muitas vezes, estão entregues à própria sorte, muitos são os monstros, bem como os coadjuvantes, amedrontados. Há ainda aqueles e aquelas que acreditam não fazer parte da história.
Mas um conto de terror tem também seus heróis e heroínas. Neste conto, são aqueles e aquelas que não desistem, que amam! Não se dobram, sonham! Carregam bandeiras! Lutam e inspiram a lutar! Insistem incessantemente em esperançar!
Sobre os autores
Michele é pedagoga (UEMG) e especialista em Orientação e Supervisão, Psicopedagogia e Gestão de Projetos. Coordenadora da Rede de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente em Divinópolis MG.
José é doutor em Educação (PUC MG). Professor da rede municipal de ensino e presidente do Conselho Municipal de Educação de Divinópolis MG.
Imagem de destaque: Galeria de imagens