Alexandra Lima da Silva*
Voltei para minha infância nos anos 80 após assistir ao curta brasileiro Cores e Botas, escrito e dirigido pela cineasta negra Juliana Vicente. Nasci em outubro de 1980. Menina negra, tenho vaga lembrança da minha irmã Eliane, mãe de santo no terreiro da família em Belford Roxo. Morei em vários lugares, e em junho de 1986, era uma sapeca menina em Paciência, zona oeste do Rio de Janeiro. Eu gostava muito do meu cabelo: longo e com muito volume. Como eu ainda não estava na escola, lembro-me de todas as manhãs sentar em frente a TV para assistir ao recém-nascido Xou da Xuxa, na Rede Globo.
Eu adorava me olhar no espelho, e vivia penteando meus longos cabelos com muito volume, várias vezes ao dia, inclusive. Eu queria ter o mesmo penteado da Xuxa, especialmente no primeiro LP dela: um rabo de cavalo cacheado e com volume – provavelmente de permanente – com franja. O rabo de cavalo com cachos e volume eu tinha, só me faltava a franja! Adulto nenhum queria cortar meu cabelo com franja. Minha mãe se recusava. Dizia que meu cabelo não pegava franja e que eu iria estragar o cabelo com aquilo.
Pois bem, criança teimosa que era, me tranquei no quarto com uma tesoura e sim: cortei o cabelo! Um horror! Todos disseram que era o famoso “caminho de rato”. Não sobrou muita coisa para a franja…
Enfim, foi a primeira vez que conheci o “Joãozinho”… O primeiro de uma série, afinal…
Minha relação com o Xou da Xuxa não termina ai.
Entrei para escola nos idos de 1987. Fui alfabetizada com aquela música, o Abecedário da Xuxa. Lembro da letra até hoje:
“A de amor, B de baixinho, C de coração, D de docinho, E de escola…”.
Sim, se deixar eu sou capaz de cantar toda.
E sim, eu cantava na escola, sempre a primeira da fila, e ai de quem tentasse me tirar o protagonismo. Eu não ligava muito se tinha gente rindo. E sempre tinha gente rindo, pois eu não era branca, nem loira…
A propósito, não havia meninas loiras na escolinha pública de apenas duas salas onde me alfabetizei, agora já zona rural de Itaboraí, num lugar chamado Perobas.
Mas as meninas brancas se achavam as eleitas naturais para “fazer a Xuxa”. Mesmo assim, eu não hesitava em fazer a Xuxa no recreio. Certa vez um menino tentou praticar bullying comigo. Mas ele não foi muito feliz na tentativa. Dei um chute na canela dele com meu sapatinho de bico fino e corri feito o Usain Bolt. Ele nunca mais tentou me humilhar novamente. E eu segui fazendo minhas danças no recreio, sem me importar muito com a audiência.
E a relação da professora com a Xuxa também não terminou no abecedário. Criativa que só, ela ousou criar uma apresentação musical com a música Arco-íris na festinha de fim de ano. E lá foram as meninas, todas vestidas de saia de papel crepom para fazer a dancinha.
Nós, crianças pobres e vivendo numa zona rural, não tínhamos dinheiro para comprar a famosa bota e o chapéu das Paquitas. Também não me lembro de haver meninas loiras de olhos azuis na minha escola. Mas ainda assim, nos apresentavam a beleza como sendo aquilo que vinha da “loirice” da Xuxa, utilizada como recurso pedagógico para educar crianças negras e pobres, numa zona rural.
Eu era muito curiosa e desinibida, gostava de tudo o que era oferecido pela escola e pelas professoras, todas brancas. Minha irmã, dois anos mais velha, sentia muita vergonha, e achava uma humilhação fazer a dancinha com papel crepom. Eu não. Realmente adorava “fazer a Xuxa” lá na frente. Nunca quis ser Paquita. Eu queria ser a própria Xuxa. E em todas as festinhas infantis, eu corria e dançava lá, do meu jeito, “me sentindo”.
Mas a medida que fui crescendo, passei a entender que não me bastava a coragem e a cara de pau para dançar, sem vergonha e sem pudor. Eu não era branca. E nunca seria. Meu cabelo não era loiro e nunca seria. E o mais importante: eu gostava do meu cabelo escuro, crespo, longo e com volume. Não queria alisar.
De repente, não conseguia mais dançar.
Eu aprendi que não nasci com o privilégio da branquitude. Logo, as pessoas esperavam que eu fizesse a “mulata Globeleza”. Passei a entender, a medida que fui reconhecendo o racismo cotidiano, que meninas como eu deveriam se apoderar das próprias história e deveriam se recusar a aceitar passivamente um lugar previamente reservado. Encontrei nos livros meu caminho para casa…Joana, a menina de Cores e botas, encontrou uma câmera.
Cores e botas é o filme da minha geração. Lua de Cristal não. Os desenhos animados da década de oitenta também não me representam. Conto nos dedos as personagens negras nos desenhos animados da minha geração. Cores e botas me fez voltar no tempo e refletir sobre meus próprios sonhos e dores. Ninguém quer ser rejeitada. Todas queremos aceitação. O filme evoca sentimentos múltimos, dores tão íntimas, mas coletivas. Compartilhamos isso.
Me reconheço na menina Joana. Fui Joana. Rejeitadas no teste para Paquita, sobrevivemos ao Xou da Xuxa e à branquitude valorizada na escola. Seguimos nossas histórias. Somos todas protagonistas, em primeira pessoa. Somos plurais. Sejamos autoras de nossas histórias.
*Alexandra Lima da Silva é professora da Faculdade de Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
# UERJRESISTE
Filme: CORES E BOTAS. Direção: Juliana Vicente, Brasil: 2010.
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