Sobre a necessidade de uma educação escolar verdadeiramente quilombola

Tayanne Adrian Santana Morais da Silva

“Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais”. Esta frase foi proferida pelo atual presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, enquanto ainda exercia o seu mandato como deputado federal, em 2017. A escolha proposital do termo “arroba” – unidade de medida utilizada para medir o peso de bovinos e suínos – e a visão do quilombola enquanto um “faz nada” que não serve nem para a reprodução (em claras comparações entre quilombolas e animais) pode ser entendida como o exemplo verbalizado de uma visão estereotipada e preconceituosa sobre os povos de quilombos, visão esta que foi moldada pela herança de um passado colonial que ainda hoje assombra e marginaliza as populações negras do campo. Não só a frase do atual presidente, mas a sua absolvição, em 2019, do processo de racismo contra as comunidades quilombolas, revelam muito das relações de poder e os movimentos de dominação que são usados na nossa sociedade como forma de mascarar e perpetuar as injustiças e desigualdades sociais que acometem os povos de quilombo.

Para além da expressão de cunho racista, a visão reducionista e pejorativa do até então deputado federal descortina a resistência de um senso comum desenvolvido como parte de uma memória colonial que considera como acabadas as lutas das populações descendentes de pessoas escravizadas e que lê como “inúteis” as existências dos povos quilombolas. Uma rápida análise nos livros didáticos brasileiros pode confirmar esse primeiro cenário, visto que as pessoas negras (com este recorte racial), em geral, só aparecem nas narrativas até o evento da abolição, não havendo muitos relatos sobre os movimentos dessas populações durante o século XX, nem da construção de suas lutas em prol de políticas públicas que reparem os danos causados pelo período da escravização da população negra.

Esse senso comum ignora todas as pautas e reivindicações da população negra, especialmente dos povos negros do campo, construídas após a assinatura da Lei Áurea (1888) e, a exemplo da fala de Jair Bolsonaro, situa e restringe propositalmente a imagem dos quilombos e de seus sujeitos ao período escravocrata no Brasil. Somada a essa invisibilidade que é alimentada diariamente pelo racismo estrutural sob o qual todos nós vivemos, os remanescentes quilombolas ainda enfrentam a ausência de um sistema educacional que compreenda as especificidades de suas comunidades e que busque promover o combate à discriminação contra essas comunidades, o que contribui com a manutenção desse status de marginalização dos quilombos enquanto segmentos sociais atuantes ainda nos dias de hoje.

Para superar este cenário de invisibilidade é imprescindível destacar por meio da educação a presença de quilombolas no Brasil contemporâneo, os quais seguem lutando pela preservação das suas culturas e de suas formas singulares de transmissão de bens materiais e imateriais para suas comunidades. Mais do que refletir sobre a representação dos quilombos atuais no livro didático, é preciso considerar o papel da Educação Escolar Quilombola no processo de reconhecimento e valorização da cultura dos remanescentes de quilombos, visto que a educação é um dos instrumentos responsáveis por transmitir os legados das lutas das gerações anteriores aos mais jovens e põe em pauta a necessidade de preservação de línguas reminiscentes, marcos civilizatórios, práticas culturais, repertórios orais, festejos, usos, tradições e demais elementos que fazem parte do patrimônio cultural dos povos de quilombo de todo o país.

Foi justamente com esse propósito que políticas públicas voltadas para esse tipo de modalidade educacional entraram em cena, a exemplo da Resolução CNE/CEB nº 8, de novembro de 2012, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica (DCNEEQ). O reconhecimento da necessidade de uma educação escolar ancorada nos saberes de remanescentes quilombolas significou pensar que a escola, enquanto promotora da socialização entre visões de mundo e valores diferentes, se pautada em uma visão tradicional da educação, pode contribuir com o apagamento das particularidades que fazem parte das vivências dos povos de quilombo.

Mesmo com alguns avanços, no entanto, ainda existem problemáticas que dificultam o acesso pleno dos remanescentes a um sistema de ensino gratuito e de qualidade voltados para as especificidades das comunidades quilombolas. A falta de infraestrutura das escolas próximas e até dentro dos quilombos, bem como a incipiente observância dos marcos legais, tais como as DCNEEQ e a Lei 10.639/03, são exemplos da frágil estrutura sobre a qual os direitos dos povos quilombolas, foram sendo construídos desde o pós-abolição. Soma-se a esses condicionantes um currículo escolar que ainda se encontra colonizado por modelos educacionais eurocentrados que marginalizam outras culturas e outras formas de saber.

Diante desses desafios, a Educação Escolar Quilombola se apresenta como uma modalidade educacional que pode alimentar a memória coletiva através de elementos que fazem parte do patrimônio cultural dos remanescentes quilombolas. Nessa modalidade da educação a ideia de pertencimento ao chão da comunidade é lida, apreendida e valorizada no fazer educativo através de práticas que consideram as formas de saber dos povos de quilombos contemporâneos. Sob uma perspectiva verdadeiramente quilombola, a educação escolar toma para si a tarefa de promover a emancipação desses grupos, indo de encontro a lógica da discriminação e do preconceito que ainda recai sobre a população negra do campo.

A proposta da educação quilombola, especialmente aquela apresentada nas DCNEEQ, não se pauta em uma compartimentação da sociedade brasileira em grupos culturalmente fechados com escolas igualmente fechadas e exclusivas, mas se fundamenta em uma visão da educação que se propõe a reconhecer o direito às diferenças, possibilitando que segmentos antes marginalizados, possam ser reconhecidos e ter seus direitos respeitados. Sob essa ideia de educação escolar é possível valorizar identidades culturais de remanescentes de quilombo, desconstruir posturas racistas de dentro da escola e ceder lugar a práticas educacionais que atendam aos diferentes segmentos sociais sem segregá-los ou substituí-los.

Além da abordagem de conteúdos curriculares comuns a outras modalidades educacionais, ao dialogar com os saberes de comunidades negras do campo,  a educação escolar quilombola se constitui como um espaço próprio para o jogo com as “verdades históricas”, como elas foram construídas ao longo do tempo e a que fins políticos essas supostas verdades serviram e ainda servem, possibilitando o entendimento de como a população afro-brasileira foi sendo ocultada da narrativa histórica após a abolição e o viés discriminatório por trás      desse ocultamento. Ao entender como necessários o reconhecimento dessas histórias propositalmente esquecidas e a visibilidade das diversas identidades brasileiras, a educação escolar quilombola pode ser pensada como um movimento que vai de encontro às visões unificadoras da cultura brasileira que se voltam para o ocidente branco e cristão, enquanto tenta eclipsar de nossa história as experiências das comunidades afro-brasileiras.

Em suma, a ideia de uma educação quilombola considera a escola enquanto campo privilegiado para a crítica de modelos etnocêntricos e como espaço para o estímulo a uma formação humana plural e tolerante, voltada para a valorização das identidades, das práticas culturais e das histórias das comunidades quilombolas. Para além dessas questões, o fazer educativo sob essa perspectiva pode fomentar a quebra de construções genéricas e estereotipadas sobre os povos de quilombo, fornecendo oportunidades educacionais compromissadas com o enfrentamento ao histórico de silenciamentos e perseguições às populações negras, ao mesmo tempo em que estabelece uma relação dialógica com o combate à discriminação racial no Brasil.


Imagem de destaque: Comunidade quilombola Sacopã, na Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro. Tânia Rêgo / Agência Brasil

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