Sob a ordem lúgubre do dia… Ainda assim, pedimos: esperancemos!

Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de modo mais duradouro do que antes (Freud, Sobre a transitoriedade, 1916).

Douglas Tomácio¹

Walesson Gomes da Silva² 

Faz já, no Brasil, 488 dias. Ou, sob ótica outra, 522.124 vidas. Da descoberta, à ordem do dia; diria aquela revista sobre o que a morte é a nós brasileiros nestes tempos pandêmicos de COVID-19. Doído ter de concordar, doído ter de sentir, doído ter de tanto chorar, ainda que seco esteja já o pranto. Cansaço que engasga.

E assim seguimos num lúgubre horizonte a embalar o lamento. Mas também a luta resistente. A despeito do fatigante respirar (às vezes ainda mais custoso e alvo de imitações esquálidas e pérfidas do quadro executivo brasileiro), o coro nosso é calejado pelas lutas tantas, pela brasilidade desigual cotidiana que em nós percorre (corpos pretos, indígenas, LGBTQIA+, deficientes, rurais etc) e que também expressa o nosso fazer-ser EJA. 

Anteriormente, nesta  mesma coluna – já nos disseram os colegas Renata Amaral e Natalino Neves – que a EJA tem cara, cor, raça, classe. Tem os mesmos elementos de historicidade que se pretende silenciar, daqueles que, na contagem acima expressa, compõem a maioria dos mortos. Lidos numericamente, sob a praticidade neoliberal, assinalam números que parecem menos interessantes se comparados forem aos escusos e rentáveis contratos que enredam as vidas nossas (genocídio?!). E, assim, esvaziando o Brasil de uns indesejados, esvaziamos também a EJA, por essas caras, cores, classes e raças tão composta. 

O mesmo fazemos com aquele professor que nela labuta. Trabalhador que, voltando sob doses meticulosas de coerção, adentram às escolas de crianças e adolescentes. Lembremo-nos, no entanto, de que são eles, professores da EJA, e do ensino para crianças e adolescentes, e do espaço não escolar; nas jornadas duplas e triplas para o sustento minimamente digno. É o horror que tanto nos diz acerca do ser professor nestes nossos dias. A mensagem do colega educador ainda ressoa: “É, meu amigo, não tá fácil, não. Lá na prefeitura, da turma do 8º ano, sobrou eu e a professora de português (…)”. Parece que a morte se tornou também ensinança de nós requerida.  

Pretos, pobres, trabalhadores, sobreviventes, sujeitos da EJA (sujeitos-EJA) vivenciam a morte tangenciando o cotidiano. Suas vidas, menos importantes, também nos tempos nossos, têm nela a ordem do dia. Esvaziado este de “nós”, inabitados tornam-se nossos espaços, ocupações, nossa EJA. O esvaziamento parece ter destino certo. São dolorosas constatações a expressar o que nos disseram Berenchtein Netto e Carvalho (2018), quando postularam que a forma de morrermos aponta para nossa forma de viver socialmente. 

Contudo, alertaram-nos também os colegas colunistas: somos força! E, importa dizer, somos força ancestral. Respiramos luta e nela nos forjamos. Nas assimetrias sócio-históricas, tecemos nossos cantos-embates, enredamos a educação sob horizontes de utopia a ser habitada. E assim, nessas utopias combatentes nossas, compusemos e comporemos a EJA: forte, ancestral, resistente, educadora!

Como quem, muitas vezes, ousa construir o ainda imaginado, trazemos à matéria-corpo a pedagogia que acolhe. Levantamo-nos por nós-coletividade, por elas, eles, elxs, pelos 488 dias, ou, sob aquela ótica outra, pelas 522.124 vidas que importam, amaram, que foram/são majoritariamente EJA. 

E por isso, neste amanhã hoje partejado, insistimos (inspirados por mestres tant@s) na força do “se”, do imaginar e tecer em lúcida reflexão. Rememoramos Raymond Williams (2015) e convidamos à radicalidade visceral: aquela que torna a esperança mais possível do que o desespero convincente. Quem sabe assim, podemos reconstruir em solo mais firme, duradouro, afável… E que seja para todos nós. 

Pedimos: esperancemos!  

 

1Historiador, Pedagogo. Professor do Departamento de Educação e Ciências Humanas (DECH) e da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Professor do Instituto DH – Pesquisa, Promoção e Intervenção em Direitos Humanos e Cidadania. E-mail: dtlmeduc@gmail.com

2Pós-Doutor em Estudos da Ocupação EEFFTO-UFMG, Doutor e Mestre em Estudos do Lazer EEFFTO-UFMG. Professor e Pesquisador da UEMG. Professor Colaborador do PROMESTRE Mestrado Profissional em Educação da FaE/UFMG. Correio eletrônico: walesson@ufmg.br


Imagem de destaque:  cedida pela editoria. 

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