Ler o texto “Olhos d’água” (2016) da Conceição Evaristo é mergulhar na pergunta que ela faz sobre “qual a cor dos olhos da minha mãe?” A leitura do texto em alguns momentos aflorou uma sensível familiaridade, além de permitir relembrar experiências com as mulheres negras que estavam presentes na minha infância. Outra leitura incrível foi “O quarto de despejo” (2014) da Carolina Maria de Jesus que estimula ainda mais minha reflexão iniciada no questionamento sobre a cor dos olhos, mas que acabo perguntando a mim mesmo como eram os rostos das mulheres negras na minha infância?
Fiquei impressionado que sabia alguns nomes, porém, não lembrava de seus rostos, suas feições e detalhes que as diferenciavam. O que mais causou desconforto foi identificar que suas fisionomias são como borrões. Lembrei da estatura, cores de roupas, acessórios que gostavam, os lenços nas cabeças e os cuidados com os cabelos. Também recordo que sempre foram ótimas cozinheiras. Era maravilhoso visitá-las, sempre tinham boas refeições e saborosas sobremesas. Suas casas estavam perfumadas, limpas e organizadas.
Uma tia, em especial, minha madrinha de acordo com a tradição religiosa seguida por boa parte da família, sempre tinha uma flor de Jasmim em um copo ou um pequeno vaso em cima da mesa de sua casa. Ela era impregnada pelo doce perfume de Jasmim e hoje, toda vez que sinto o cheiro dessa flor, sou transportado para o apartamento dela no bairro Pestano em Pelotas/RS.
Certo, essa parece ser uma boa memória, mas qual o rosto das mulheres negras em minha infância? Sei que muitas ficavam em casa, dedicando seu tempo à família. Outras eram empregadas domésticas, faxineiras e tinham professoras com parentesco um pouco mais distantes, sem maiores contatos ou grande influência em minha vida.
Ao constatar essa realidade, penso sobre o que impede de lembrar seus rostos, fazendo ver apenas vultos familiares. Percebo, a partir do livro “Homens Invisíveis” (2004) do Fernando Braga da Costa, que as pessoas que realizam atividades subalternas são invisibilizadas ou, simplesmente, não são percebidas. A mesma percepção relaciono com minhas “tias”: mulheres negras e também os homens negros, que sofreram com a invisibilidade de suas atividades laborais e subalternas.
Fato que favoreceu o desenvolvimento de estereótipos e generalizações, portanto, se todos são semelhantes é porque são iguais, exemplo encontrado na frase que diz serem todos os negros iguais, todos os japoneses ou orientais, iguais. Uma expressão simples e naturalizada, carregada de generalizações que escamoteiam as individualidades e o reconhecimento do outro como um ser único.
Duas personagens das histórias do “Sitio do Pica-Pau Amarelo” do escritor Monteiro Lobato ajudam a entender essa relação de invisibilidade. Quando pensamos em Dona Benta facilmente uma imagem e representação de uma vovó torna-se nítida, inclusive, lembramos dos muitos rostos das atrizes que a interpretaram na televisão. Agora, quando falamos da Tia Anastácia a lembrança é uma generalização da mulher negra na posição de coadjuvante, aceita como boa cozinheira e com a marca do lenço cobrindo os cabelos. O corpo negro é percebido, mas seu rosto e fisionomia, não.
Alguém pode dizer ser devaneio de uma mente inquieta ou segregacionista, como escutei recentemente, porém, é inegável que durante muito tempo não valorizamos o rosto negro, as generalizações bastavam, pois, todos são marginais, são violentos, desonestos etc.
O Dia da Consciência Negra, comemorado no último final de semana, ajuda a entender como essa realidade se perpetua. O dia proporciona um momento para questionar e incentivar o desejo de ver os rostos de pessoas negras em consultórios médicos, salas de aula, telejornais, proprietários e líderes em organizações empresariais, políticos, entre outras atividades em que a face marca o personalismo.
Motivados por esse dia, as pessoas negras devem deixar de ser invisíveis ao ocupar espaços de representatividade na sociedade, em outras palavras nossos rostos serão identificados por sua individualidade e não mais por sua generalização.
Como negros somos iguais no sofrimento e nas lutas, mas singulares como indivíduos e merecemos ter nossos rostos reconhecidos, não como um sinal de respeito, e sim como existência. Por fim, como são os rostos das minhas tias? São belos, cheios de vida, com lágrimas, suor e sorrisos para e pela vida. Quando consigo definir suas feições vejo olhos cheios de esperança que sonhavam ver seus filhos(as) e netos(as) vivendo em um mundo melhor e com mais oportunidades.
Que seus rostos, nomes e ações possam ser reconhecidos, assim recontamos e construímos uma nova história, não mais com base em generalizações e com feições borradas. O momento é de resgatar as singularidades perdidas ou invisibilizadas, desmistificando generalizações, aceitando que estamos aqui e permaneceremos com nossos rostos expressando sonhos de um novo presente e um futuro promissor.
Para saber mais
COSTA, Fernando Braga da. Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo: Globo, 2004.
EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro, Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.
Imagem de destaque: Pallas editora