Resistência na música POP: reflexos da África

Ivangilda Bispo dos Santos*

A resistência afrodescente é propositiva. Na história do Brasil este fato é inegavelmente explícito no campo cultural. Nos adereços, penteados, cores das vestimentas, danças e músicas nossa ancestralidade africana grita. Muitos enxergam como exótico. Estranham bases culturais construídas ao longo de milênios e que nossas famílias, ao serem trazidas forçadamente para esse território, guardaram consigo, reproduziram e ressignificaram. No âmbito educacional, o aspecto cultural é o mais mobilizado nas escolas. Em geral, as práticas pedagógicas que optam por esse caminho focam em um viés recreativo e estético baseado em um discurso que valoriza a diversidade étnico-racial do povo brasileiro. Mas e a África?

Não é coerente falar sobre o protagonismo negro e ignorar a agência africana se estamos lutando pela introdução efetiva da Lei 10.639/03. Precisamos superar um imaginário que apresenta a África como um pano de fundo da história brasileira situado no nosso passado colonial. Reconhecer que nossas relações superam essa conjuntura histórica e valorizar as especificidades da história africana é complexificar o que entendemos como diversidade e ampliar os debates em torno de conceitos como identidade e etnia. Com o objetivo de demonstrar que tal abordagem é possível, iremos exemplificar utilizando a relação entre a história e a música. A intenção é instigar os educadores – professoras, mediadores culturais, oficineiros, entre outros – a desenvolverem abordagens que superem a narrativa expositiva e adotem uma narrativa pautada no diálogo crítico.

Entre as músicas brasileiras que trazem elementos que remetem ao continente africano e que possuem grande circulação nacional na atualidade podemos citar A coisa tá preta, do cantor Rincon Sapiência, e Ginga, da cantora IZA (part. Rincon Sapiência). Ambas remetem a valorização de termos que geralmente são vistos de forma negativa (a expressão “a coisa tá preta” e a palavra mandinga) e fazem uma narrativa pautada na resistência, autoconfiança e superação dos povos negros. Em meio à multiplicidade de interpretações possíveis, suas letras são ótimos pontos de partida para conhecermos um pouco sobre alguns povos africanos e sobre as ligações históricas e sociais existentes entre a África Central / a África Ocidental e o Brasil.

Comecemos pela rainha Nzinga/Njinga, citada na música A coisa tá preta. Esta soberana viveu no século XVII em Matamba, atual Angola. O primeiro nome tem origem nos mitos do povo congo e está associado à noção de unificação e organização política, tendo integrado o nome de linhagem de diversos reis nos séculos XV e XVI. Após a morte da rainha, seu nome passou a designar o título político e povo. Sua trajetória influenciou várias outras Jingas durante o século XVIII. Até os nossos dias, é muito lembrada como guerreira, estrategista e negociadora, tendo empreendido resistência ao domínio português. Na década de 1970, em Angola, foi recuperada como liderança que se opôs a invasão estrangeira tendo sido uma figura significativa na literatura que se contraponha a colonização – Agostinho Neto, Manuel Pacavira e Pepetela abordam a soberana em seus textos. É representada atualmente como símbolo da identidade nacional angolana.

No Brasil o Movimento Negro, em todo seu caráter educador e político, conforme defende a pedagoga Nilma Nino Gomes, apropriou-se da trajetória da Rainha Nzinga/Ginga e por diversos meios a exaltam como símbolo de resistência. Na capoeira, por exemplo, este paralelo é perceptível nos movimentos corporais e nas letras das músicas. A historiadora Mariana Bracks afirma que o movimento ginga da Capoeira Angola é uma referência à trajetória da Rainha Nzinga, marcadamente bélica e diplomática. O termo ginga, provavelmente, tem origem nas línguas de matriz banto, mas só começa a parecer no português falado no Brasil no final do século XIX. Por outro lado, desde o começo deste século há registros do nome da Rainha em celebrações de coroação de reis e rainhas negras por todo o país, nos congados.

Além de Nzinga e Ginga, a palavra mandinga também aparece nas músicas que estamos abordando. Atualmente na Capoeira Angola, de acordo com Mestre Pastinha, ginga é malícia e “manha”, “É insinuar que vai para lá e acaba indo para cá”. Em diversas regiões e temporalidades no Brasil, o termo remeteu a definições diferentes. Na década de 1950, em Feira de Santana, o termo “adeptos da mandinga” remetia aos agentes do candomblé. Nas dinâmicas do espaço atlântico, entre os séculos XVI e XVIII, temos dados sobre a circulação de bolsas de mandinga, utilizadas para proteção pessoal, no Brasil e em Portugal. Cabe mencionar que os capoeiristas, os candomblecistas e os portadores de bolsas de mandinga foram perseguidos. Em África, mais especificamente na Costa da Guiné, reino do Mali, havia os povos mandingas. Os reis dessa configuração política, estabelecida na metade do século XIII, geralmente são representados como homens que exerciam a caça, metalurgia, guerra e magia. Os mandingas foram responsáveis por expandir a fé muçulmana na região e, associado a tal processo, a difundir objetos de proteção pessoal com inscrições do Alcorão. Vários documentos feitos por missionários e comerciantes europeus representaram os mandingas como feiticeiros e supersticiosos, sendo este primeiro termo reforçado pela Inquisição. Além da questão religiosa, os mandingas incomodavam os portugueses por terem privilégios comerciais em áreas que estes não tinham acesso e porque possuíam permissão e segurança para circularem pelo interior do território.

Conhecer, refletir e dialogar sobre as especificidades da história africana e as relações destas com a nossa história é fortalecedor. Fazer uso de fontes históricas variadas – como relatos de viagem, processos inquisitoriais, iconografias, relatórios policiais e músicas – nos espaços educativos também nos permite ampliar a participação e envolvimento.

Apesar de persistentes ataques a uma educação que reconheça os negros como agentes, promover práticas que não negligenciem a ação dos diversos sujeitos históricos é colaborar para a construção de uma sociedade menos desigual no presente.

REFERÊNCIAS

FONSECA, Mariana Bracks. Ginga de Angola: memórias e representações da rainha guerreira na diáspora. Tese (Doutorado) – Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2018. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-31072018-172020/pt-br.php>. Acesso em: 08/12/2019.

GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro educador. Saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2017.

OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. “Adeptos da mandinga”: candomblés, curandeiros e repressão policial na Princesa do Sertão (Feira de Santana-BA, 1938-1970), Tese (Doutorado) – Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2010. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/8604>. Acesso em: 08/12/2019.

SANTOS, Vanicléia Silva. As bolsas de mandinga no espaço Atlântico: século XVIII. Tese (Doutorado) – Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2008. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-23042009-095859/pt-br.php>. Acesso em: 08/12/2019.


* Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, licenciada e bacharel em História pela mesma instituição. É colaboradora do projeto Ciclo Permanente de Estudos e Debates sobre Educação Básica e integra os seguintes grupos de pesquisa: História dos Processos Educadores (UFMG), Áfricas: história, política e cultura (UFMG) e Polís e Mnemosine: Cidade, Memória e Educação (UEMG). E-mail: ivangildabs@yahoo.com.br

Imagem de destaque: One zone Studio / Unsplash

 

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