Repensando a educação: o caso da malária

Luzia H Carvalho*

       

Ei, Primo, aí vem ela… – Danada!…

– Olh’ele aí… o friozinho nas costas…

E a maleita é a ‘danada’.

(Sarapalha, da obra Sagarana, Guimaraes Rosa)

 

Lembro da minha primeira viagem para a Amazônia há cerca de 25 anos quando um garimpeiro me advertiu: “se eu viajar para a sua terra e os sintomas da malária aparecerem lá, eu pego o primeiro avião de volta, pois lá eles não sabem nada de malária e vão me deixar morrer”. De fato, a desinformação sobre a malária – doença febril aguda transmitida pela picada de mosquitos infectados com o parasito chamado plasmódio – ainda é grande nas outras regiões do Brasil, onde a doença não é frequente (região extra-Amazônica). Como bem lembrou o garimpeiro, no Brasil, a malária é bastante conhecida das populações que habitam a Amazônia, onde além da transmissão ser frequente (área endêmica), a doença tem impactado no aprendizado de escolares.1 De fato, 99% dos casos de malária no Brasil ocorrem na chamada “Amazônia legal”— com 5 milhões km2 ocupa 61% do território brasileiro — sendo composta de 9 estados (AC, AP, AM, MT, PA, RO, RR, TO e MA). O conhecimento local sobre a doença faz com que médicos e profissionais de saúde possam “pensar em malária” quando um indivíduo procura os serviços de saúde com sintomas típicos, mas não específicos, tais como, febre intermitente, calafrio, dor no corpo e de cabeça. Suspeitar de malária pode salvar vidas, já que a malária pode ser curada quando os pacientes são diagnosticados e tratados oportunamente, idealmente nas primeiras 48h pós sintomas.

A lembrança do garimpeiro sempre vem à minha memória quando tenho notícias de mortes por malária fora da Amazônia. Mortes que, em geral, poderiam ser evitadas, pois estamos falando de doença curável, cujo diagnóstico e tratamento estão disponíveis nos serviços de referência da rede do SUS.2 Nos primeiros meses de 2020, duas mortes por malária já foram registradas na região metropolitana da minha cidade de residência (Belo Horizonte-MG). Casos cuja infecção foi adquirida durante viagens para áreas endêmicas (no Brasil ou exterior, como a África), portanto, malária importada. Os pacientes que vieram a óbito se infectaram com um tipo de malária mais grave, cujo nome científico é Plasmodium falciparum. Aqui, de novo, a história do garimpeiro se confirma, pois o desconhecimento sobre a doença leva à demora na procura do serviço de saúde, com consequente atraso no diagnóstico/tratamento. Colocando a preocupação do ilustre desconhecido garimpeiro em números, estima-se que apenas 19% de todos os casos de malária na região extra-amazônica são diagnosticados e tratados nas primeiras 48 horas após o início dos sintomas, contra 60% na Amazônia.3 Isto explica o maior gravidade e morte da doença fora da Amazônia.

Na região extra-amazônica, além dos casos importados de malária, podemos ter ainda transmissão local. Isto tem acontecido, por exemplo, na região da Mata Atlântica, pois lá temos macacos como reservatórios de um tipo de malária que infecta o homem, sendo os casos humanos mais frequentes em estados como SP e RJ.4 A transmissão fora da Amazônia também pode acontecer porque os mosquitos transmissores (anofelinos) estão presentes em todo o território nacional. Assim, a chegada de um doente pode resultar na infecção de mosquitos locais que poderão transmitir para indivíduos susceptíveis iniciando um surto de transmissão.

Aqui, volto à região metropolitana de Belo Horizonte, onde há alguns anos, eu tive a oportunidade de entrevistar alguns moradores que vivenciaram, pela primeira vez, um surto de transmissão local de malária.5 O primeiro paciente ficou cerca de 10 dias internado sem diagnóstico (suspeita era dengue, cujos sintomas podem ser semelhantes aos da malária). É possível que o paciente não foi a óbito porque o surto foi causado por uma malária menos letal – malária vivax (causada por Plasmodium vivax) – responsável hoje pela maioria dos casos de malária no Brasil. Durante as entrevistas observei que a suspeita clínica de malária veio de uma criança, pois, segundo os relatos, ela comentou “vocês estão parecendo meu pai quando volta de viagem com malária, pois ele fica tremendo e com febre”. Portanto, conhecer sobre malária é fundamental em qualquer nível de escolaridade.

Eu me pergunto quando vamos mudar esta triste realidade, cujos dados oficiais confirmam que a chance de morrer de malária é dezenas de vezes maior fora da Amazônia.3 Não tenho dúvida, com educação! Para que possamos formar cidadãos que possam conhecer não só a malária, mas outras doenças infecto parasitárias que assolam os nossos muitos “Brasis”, tantas vezes retratados com nuances poéticas nas obras de Graciliano Ramos, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. No momento atual, onde deveria estar em foco o aprimoramento da educação no país, o que estamos assistindo? Reformas curriculares polêmicas, cortes de orçamento na educação pública, em todas as esferas, incluindo ensino superior e pós-graduação. Que projeto pedagógico queremos para o Brasil? Como defendido pelo nosso mais ilustre pedagogo (Paulo Freire) aquele que educa as pessoas, pois só assim elas poderão ser transformadoras.

 

*Pesquisadora titular, Instituto René Rachou (IRR), Fiocruz-Minas; Docente de Pós-graduação dos cursos de Ciências da Saúde (IRR) e Parasitologia (ICB/UFMG). E-mail:luzia.carvalho@fiocruz.br

 

Referências

1Vitor-Silva S, Reyes-Lecca RC, Pinheiro TR, Lacerda MV. Malaria is associated with poor school performance in an endemic area of the Brazilian Amazon. Malar J. 8:230, 2009.

2Guia de tratamento da malária no Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis 2020.

3de Pina-Costa A, Brasil P, Di Santi SM, de Araujo MP, Suárez-Mutis MC, Santelli AC, Oliveira-Ferreira J, Lourenço-de-Oliveira R, Daniel-Ribeiro CT. Malaria in Brazil: what happens outside the Amazonian endemic region. Mem Inst Oswaldo Cruz. 2014 109(5):618-33, 2014

4Abreu FVS, Santos ED, Mello ARL, Gomes LR, Alvarenga DAM, Gomes MQ, Vargas WP, Bianco-Júnior C, Pina-Costa A, Teixeira DS, Romano APM, Manso PPA, Pelajo-Machado M, Brasil P, Daniel-Ribeiro CT, Brito CFA, Ferreira-da-Cruz MF, Lourenço-de-Oliveira R. Howler monkeys are the reservoir of malarial parasites causing zoonotic infections in the Atlantic forest of Rio de Janeiro.

5Ceravolo IP, Sanchez BA, Sousa TN, Guerra BM, Soares IS, Braga EM, McHenry AM, Adams JH, Brito CF, Carvalho LH. Naturally acquired inhibitory antibodies to Plasmodium vivax Duffy binding protein are short-lived and allele-specific following a single malaria infection. Clin Exp Immunol. 156(3):502-10, 2009

 

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.


Imagem de destaque: Secom / Fotos Publicas

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