Reflexões sobre a construção de uma educação antirracista

Cláudia Abreu

As leis 10.639/2003 e 11.645/2008 que tornaram obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira e o estudo da história e cultura indígena nos currículos dos estabelecimentos de ensino fundamental e médio no país foram um importante avanço, resultado anos de lutas dos movimentos sociais negro e indígena no Brasil.

A revisão curricular trazida pelas leis também apontou para a necessidade de formação docente, a alteração dos conteúdos nos livros e materiais didáticos, a ampliação de livros paradidáticos sobre as temáticas, além de um crescente movimento e investimento na literatura infantojuvenil a ser protagonizado por personagens negros/as e indígenas com caracterizações  positivas da vida e história dessas populações, de forma a quebrar com os estereótipos e papéis sociais usualmente a elas associadas culturalmente.

Entretanto, mesmo diante de tais avanços, a nossa educação ainda carrega enormes desafios na implementação dessas leis e na desconstrução do racismo estrutural presente na sociedade brasileira.

O grande debate sobre o processo de eliminação do racismo sistêmico implica uma série de medidas, reformas, legislação, políticas e práticas, e certamente a escola é um ambiente essencial para o avanço desta questão. Mas a luta antirracista no ambiente escolar é ainda um grande desafio.

O enfrentamento do racismo por meio da educação é apenas o primeiro passo para fazer do ambiente escolar um local cada vez mais democrático, plural, que respeite e acampe toda nossa diversidade.

Para alcançarmos resultados sólidos nesta que refletiriam de forma positiva na sociedade, a escola precisa passar por mudanças profundas e importantes, como por exemplo, uma reforma curricular mais ampla e criteriosa.

O currículo escolar, nesta perspectiva deve desenvolver temáticas sobre racismo sistêmico, sobre os saberes relacionados à história da pessoa negra e indígena brasileira,  de forma a eliminar o equívoco e a “cultura e percepção” de que a abolição da escravidão, o fim do comércio transatlântico de escravos e do colonialismo e algumas medidas tomadas pelos Estados até o momento removeram estruturas racialmente discriminatórias e criaram sociedades racialmente igualitárias, o que de fato não aconteceu.

Não menos importante, é o desenvolvimento do trabalho em sala de aula de forma sistematizada e coerente, com conteúdos referentes à temática, trazendo luz e reflexões objetivando desvendar afirmações sistemáticas como a democracia racial no auxílio para a compreensão de que a discriminação racial no Brasil é sistêmica e ultrapassa o campo individual, que certamente deve ser combatido, mas resulta do viés de sistemas, instituições e políticas públicas que separadamente e ou em conjunto perpetuam e reforçam as barreiras da desigualdade e da exclusão.

Neste sentido, tratar o racismo nas escolas é uma maneira objetiva de romper a condição estrutural utilizada por um sistema de opressão e meritocracia, ao mesmo tempo a possibilidade de apresentar às novas gerações a diferença de oportunidades, privilégios e acessos existentes e determinados por questões de raça, os quais continuam a manter pessoas negras e indígenas às margens da sociedade.

Por ser a escola o espaço privilegiado do acesso ao mundo externo, ou seja, para além do contexto afetivo familiar, muitas vezes, este costuma também ser o local onde crianças negras, indígenas vivenciam o racismo pela primeira vez, em variadas formas, intensidades e situações.

Assim torna-se essencial que a escola e seu currículo ultrapassem o viés de ferramenta e instrumento de manutenção do sistema racista e passe a contribuir na formação de pessoas éticas, conscientes da importância de que todos somos iguais dentro das diferenças que nos constituem.

Ao olharmos atentamente para os conteúdos escolares, percebemos que estes, ainda hoje, são bastante euro centrados. Conteúdos referentes à grandes eventos da história europeia, por exemplo, ocupam ainda destaque nos planejamentos escolares, em detrimento de conteúdos referentes aos acontecimentos que envolveram o processo de descolonização e independência de países africanos e da América Latina, dos grandes pensadores, ou até mesmo sobre a contribuição das culturas africanas e indígenas em esferas tecnológicas, científicas e filosóficas no país.

Ao contrário, os conteúdos escolares continuam a reforçar estereótipos e informações que limitam as contribuições de pessoas negras e de indígenas às influências culinárias, agricultura básica e na linguagem.

Neste sentido, percebe-se que há, intencionalmente, um apagamento das contribuições destes povos, bem como uma distorção de suas histórias e culturas, sempre desconsiderando-as e desvalorizando-as.

Sendo assim, a escola deve ter como prioridade a inclusão de conteúdos sobre a cultura negra e indígena ao longo do período letivo de forma que a compreensão da luta antirracista aconteça de fato e que possa culminar em uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária.

Para além de celebrar a cultura negra e indígena, é extremamente urgente a aproximação dos(as) alunos(as) de personalidades históricas, dos acontecimentos e movimentos relevantes na luta racial no Brasil e no mundo, das formas de opressão e exploração pelas quais estes povos passaram ao longo da história por outros povos que se julgaram superiores e que refletem no que temos hoje no país–racismo enraizado na sociedade e no próprio Estado.

Assim, abrir espaço de diálogo nas salas de aula para trabalhar com os (as) alunos(as) sobre justiça racial, além de ampliar a visão e abrir a mente dos mesmos, valorizando também a autoestima de crianças, adolescentes e jovens negras, indígenas no ambiente escolar, fortalecer a consciência e compreensão de que todos nascemos livres e iguais em dignidade e em direitos.

A educação continua a ser uma das ferramentas mais poderosas contra o racismo, pois a partir dela é possível acessar informações, ferramentas e criar pensamentos críticos que quebram as barreiras raciais e os ciclos de pobreza, marginalização e desigualdade que afetam as pessoas negras e indígenas, para além de permitir educar para a eliminação do preconceito e contra a discriminação. Para tal, é urgente que adotemos uma educação descolonizadora e antirracista, de forma a centralizar saberes e histórias africanas e indígenas em atividades, programas, práticas e currículo escolar.

 

Sobre a autora
Professora e Pedagoga (aposentada), especialista em Psicopedagogia pelo CEPEMG e em Coordenação Pedagógica pela UFOP- MG. Atuou em escolas da rede pública estadual, municipal e particular. Integrou o Conselho Municipal de Educação e o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente Betim – MG. Idealizadora do Projeto Pedaços de Cor.


Imagem de destaque: Galeria de Imagens.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *