Qual o lugar do trabalho pedagógico no ensino superior?- exclusivo

Evelyn Orlando

Qual o lugar do trabalho docente nas instituições de ensino superior hoje? Refiro-me àquele trabalho em que o professor empreende horas de leitura, de planejamento, de organização de material de apoio, de atendimento aos alunos em sala, pela Internet, muitas vezes nos fins de semana? Curiosamente, em nossos relatórios de avaliação docente, especialmente os voltados para os professores da pós-graduação, não há um campo determinado para esse item. Não há uma pontuação para a docência em nossos relatórios de desempenho. O trabalho pedagógico no ensino superior anda caindo vertiginosamente. Porque não temos tempo, porque não pontua, porque os alunos não demonstram interesse, porque nós muitas vezes também não temos mais interesse, ligamos nosso piloto automático e seguimos adiante. 

Ainda assim, por vezes, preocupamo-nos com os princípios que devem reger o processo de ensino/aprendizagem dos nossos estudantes. O documento “Princípios Orientadores do Processo de Ensino e Aprendizagem” (2014), da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, é um exemplo disso. O texto afirma: “Do ponto de vista pessoal e profissional, os princípios concretizam aquilo que é inegociável, que é duradouro e precisa ser preservado das urgências que pressionam nossas atitudes e nossos comportamentos”[1] (2014, p. 18). Sim, os princípios funcionam como guias coletivos e individuais para as nossas práticas do dia-a-dia. Mas quais princípios? Será que todos nós, professores, somos regidos pelos nossos princípios em nosso cotidiano? E será que estamos dando conta de formar nossos estudantes com princípios para que levem isso com eles em suas trajetórias? Tenho dúvidas. Sérias dúvidas.

Atualmente, as discussões sobre Ética e Deontologia docente têm ganhado espaço na Filosofia. Mas na Educação temos refletido pouco sobre essas questões. Talvez esteja na hora de trazer para a pauta das discussões quais os princípios que regem a profissão docente? Primeiro, a reflexão me parece necessária a todas as instituições do país que, submetidas às avaliações externas e internas, vêm perdendo o foco daquilo que lhes é fulcral. Diante desse quadro, é imperativo que se repense os princípios da profissão docente e, nessa esteira, a qualidade do ensino e do trabalho pedagógico, para além do burocrático e dessa lógica produtivista que adota como medida de avaliação do professor um peso maior para os artigos que ele publica do que para o trabalho pedagógico que realiza. 

Um segundo ponto que vem ganhando bastante relevo como problemática é a mudança no perfil do alunado, recorrente na fala de professores de diferentes cursos. Tal mudança tem levado os professores, muitas vezes a negociarem o que é inegociável. Em alguns cursos, sobretudo nas licenciaturas, baixamos o padrão, reduzimos nossas expectativas, nivelamos por baixo. E mesmo os professores que insistem em não adotar este caminho, são pressionados nessa direção. E, deste modo, vamos contribuindo para o empobrecimento desta categoria, que hoje se forma em outras bases, mais pobres.

O que fazer com nossos alunos que não dão conta dos textos que passamos porque não possuem hábitos de leitura? Por sua vez, também não sabem escrever. Não sabem se expressar. Não sabem se posicionar em um debate sem agredir o outro. Não lidam bem com as diferenças. Não lidam bem com normas mesmo vivendo em uma sociedade permeada delas. Querem negociar o inegociável. Disseram para eles que são sujeitos de direitos, mas esqueceram de falar que são igualmente sujeitos de deveres. Que são tão responsáveis pela sua formação quanto seus professores. Que formação demanda compromisso, dedicação, envolvimento e entrega a esse mundo novo que se abre a frente e os deixam atônitos. Cuidar dessas questões não é também do âmbito do pedagógico?

Vejamos: O Léxico: Dicionário de Português online vai além das definições mais usuais e, não obstante definir “pedagógico” como “saber relacionado à Pedagogia, ciência que se dedica ao processo de educação dos jovens, estudando os problemas que se relacionam com o seu desenvolvimento”, acrescenta em sua definição “que é didático, educacional ou instrutivo”. Isso me faz pensar o quanto de nossas ações em nossas instituições pode ser definido pelo seu caráter “educacional ou instrutivo”.            

Talvez estejamos preocupados demais não com a aprendizagem de nossos estudantes, mas com seu rendimento nas disciplinas, com a evasão, com o que é mensurável. Talvez estejamos esquecendo de formar a essência. Sei que alguns colegas se lerem esse texto poderão dizer que essa não é sua função, que valores e atitudes devem ser trazidos de casa. E podem, de fato. Talvez nossos estudantes tragam mesmo muitos valores e atitudes de casa. Mas, e se o repertório dos nossos alunos se mostra enviesado e isso se reflete em suas posturas e atitudes perante à vida institucional, social e pública, de modo geral? O que fazemos? Qual é o foco do ensino superior? Formar uma mente brilhante? Pode ser. Mas como essa mente brilhante convive consigo mesma e com os outros? Qual o sentido maior da nossa prática pedagógica?

Essas questões me remetem a uma lição deixada por Rubem Alves, ao falar sobre o ato de ensinar. Assim disse: “Se fosse ensinar a uma criança a beleza da música, não começaria com partituras, notas e pautas. Ouviríamos juntos as melodias mais gostosas e lhe contaria sobre os instrumentos que fazem a música. Aí, encantada com a beleza da música, ela mesma me pediria que lhe ensinasse o mistério daquelas bolinhas pretas escritas sobre cinco linhas. Porque as bolinhas pretas e as cinco linhas são apenas ferramentas para a produção da beleza musical. A experiência da beleza tem de vir antes”.  Experiência, outra palavra de ordem, não importa a idade.

Novamente me ponho a refletir: em que medida nossas experiências têm sido genuinamente pedagógicas? Não estou querendo, com isso, atribuir à formação e à boa pedagogia, a solução de todas as mazelas com as quais lidamos em nosso dia-a-dia. Gostaria apenas de provocar uma reflexão sobre o lugar do pedagógico no ensino superior. Estaria se transformando em uma atividade subjacente? Qual seria, então, nossa principal atividade como professores?  E até que ponto a redução e a aceleração de nosso tempo estão esvaziando nossas experiências de seus principais sentidos?

[1]  “Princípios orientadores do processo de ensino e aprendizagem: graduação na PUCPR o futuro é agora”, Curitiba: Pontifícia Universidade Católica do Paraná, 2014.

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