Conhecedor de cada canto daquelas tumbas flutuantes, Ayó se fez necessário. Enfrentou o cheiro da morte que habitava as embarcações. Muitas. Iam e vinham. Nauseabundas. Galeras. Bergantins. Barcos. Escunas. Corvetas. Todos abarrotados de homens, mulheres, crianças. Contabilização de ganhos, “perdas”. O mar coalhado de corpos. Descarte. Violência e escárnio costurando bainhas de tortura. Em cada um daqueles porões do inferno, o ferreiro jurou guerra. Com o espírito marcado pela revolta, e com um plano audacioso em mente, passou a levar as ferramentas da Casa Grande para o porto. Às vezes, nas costas. Outras, arrastadas em sacos, os mesmos que serviam de roupa aos recém-escravizados. No rosto, a máscara da placidez. O silêncio talhado em pedra. Moldado pelas dores da resistência.
Ayó alcançou permissão para montar carroça. Pequena. Puxada por ele mesmo. Caixa de madeira sobre rodas. Temperadas a suor e sangue. Rangendo objetivos. Sulcando a terra que fechara os olhos para os filhos arrancados da Mãe-África. Comércio de gentes.
— A gente tá ficando angustiado, Zaca! Essa parte da carroça não tem muita serventia.
— Tem!
E tinha. A carroça, à moda Cavalo de Troia…
— Exagerou, Zacaria. Como ele ia conhecê as história lá dos Turco, meu?
— Da Grécia, Tonho! Dãa! E… eu tô contando uma saga, tendeu? Sa-ga! Aquilo do Odisseu, tá ligado?
— Tá enrolando demais, saca?
— Zaca, cara! Deixa eu contá os finalmente!
Então, Ayó preparou a carroça de modo a esconder de um a dois escravos por vez. Às vezes, arriscava esconder mais. Dependia das circunstâncias. Da necessidade.
— Ô, profe! Tá muito enrolado. Faz ele contá direito!
— Direito? Eu tô contano o que é!
— Foi…que foi, Zaca. Já foi! Vai lá. Continua! Tá perdeno a graça.
— Tá…é que, o meu tantos avô tinha construído uma parede dupla, sabe!, em muitos dos navio. Tendeu? E ele usava a carroça pra levá as pessoa. Escondia elas lá. Quietinhas. Ninguém sabia das parede. E ele ensinava tudo pras pessoa. Como ficá quietinha. Como contá os dia. Como fazê na hora de descê do navio. Tendeu? E elas queria voltá. Voltá pra casa. Elas queria a vida de volta. A vida delas!
— Mas como? Como elas ia sabê quando o navio chegava na África? Furada, meu!
— Meu… as pessoa queria sabê de voltá pra casa. Onde eles sequestrava os negro? Na África, né?? Então! Se iam vazio, voltavam carregado de povo. Tende? Daí, o Ayó explicava pros fugitivo como saí, como saí do navio. Di tê paciência. Di pegá cumida.
— Eu acho que eles morria tudo! Não tem como si escondê num navio.
— Ah! Tem sim… Ayó conhecia tudo, si esqueceu?
— Duvido! Você tá inventano!
— Então… estudantes! Estou muito interessada em ouvir a sua história, Zacaria. Vamos continuar a leitura de seu texto?
— Simbora, profe!
Camuflados em pequenos espaços, longe dos olhos dos algozes, Ayó organizou esconderijos. Apertados. Quase sufocantes. Mas eram suficientes para esconder alguém durante a travessia. Precisavam contar com a sorte e com os erros de cálculo. Tanto na fazenda, quanto nas embarcações. Mas os escravos contribuíam com argumentos que funcionaram por um tempo: uma doença ruim, muito ruim, que os obrigava a queimar o corpo antes mesmo de o “Sinhô” assuntar. Doença braba. Espalhava sem dó. Não tinha embargo de pegar qualquer um. Ou então, o irmão escravo fugira durante a queima no canavial. Caíra no rio. Levado pela correnteza. Corpo comido por peixes. Piranhas. Vorazes. Isso tudo se deu muito devagar. Devagarzinho. Às vezes, o fugitivo ficava muitos dias escondido no mato, nas ribanceiras, de modo a não ligarem as fugas com as chegadas dos navios. E foi assim por um tempo. Não o suficiente. Por que um feitor desconfiado, resolveu conferir a carroça de Ayó.
— Foi aí que ele morreu?
— Foi! Ele e as criança que tavam escondida.
— Mas isso não é guerra coisa nenhuma! Foi muita burrice dele.
— Foi não!
— Foi sim! Arriscô todo mundo!
— E eles já não tavum em risco?
— Não cola, Zaca! E como sabe se alguém si salvô!? Não tem como sabê!
— Tem sim…uns poco que conseguiram descê na Terra-Mãe foram contando pros’ôtro! Sacô?
— Ah! Nem! Acho muito difícil!
— Pois, vô prová!
Os risos da sala só não foram mais altos do que a altura dos olhos da professora.
— Zacaria, não leve a ferro e fogo a sua contação…
— Pois, levo sim, profa! Ferro, fogo e papel.
— Eu quero que fique muito tranquilo sobre…
— Ó! Eu disse que não dava pra prová o real, né? Mas a realidade eu posso…hum!
Sobre a carteira de Zacaria, o instante tornou-se eterno. Nele descansava a cópia de uma reportagem em jornal angolano. De Assomada. Escrito na língua oficial, possibilitou a leitura a cada um da sala. Tratava-se de uma história contada por gerações. Um escravo fugido do Brasil, ainda menino, descera em Cabo Verde, durante uma longa noite de sequestros e mortes. Tendo aguardado o momento propício para descer da escuna, apresentava-se desnutrido e assustado. Passara trinta e cinco dias escondido em um vão camuflado na casa de máquinas. Acolhido por aqueles que também fugiam dos criminosos, sobreviveu e construiu família. Jamais deixara de mencionar o ferreiro que, na guerra pela vida e pela liberdade, morrera no tronco: Ayó.
Olhos de tristeza reviveram a história. Haveriam de pensar no que fazer com ela.
— Professorandes, professoremos! – recomeçou a professora.
Imagem de destaque: “Nègres a fond de cale”, de Johann Moritz Rugendas, que integra a obra “Voyage pittoresque dans le Brésil”, de 1835. Obra rara do acervo bibliográfico do Arquivo Nacional.