As misérias são engolidas como se farofa houvesse. Não há. Farofa corresponde ao foie gras dos orçamentos secretos. Não são. Secretos. Estão à vista. Créditos políticos. Débitos sociais.
— Ó, prof! Por que você insesti em passá pra genti essas fake?
— Fake…?
— Sabia qui aquela cena lá, do lixo…
— Das pessoas…
—É, aquilu lá…foi tudo montagi?
— Montagem?
— Cê não viu o não qué vê, prof?
Jó estende o ramo. Remo. Noé não passa a história. Bíblica inundação. A sala em espanto não guarda por muitos segundos o furor dos questionamentos.
— Prof, a tal da gripe é um chipes…
— Da El…?
— Não genti! Falu sério! Não existi Covidi. É tudo um plano, tá ligadu?
— Brisei!
— Tamém!
— E você, tomou a vacina?
— Nunca, prof! Nunca! Eles qué implantá um…um…negócio remoto, sabe! Prá controlá os…
— Os incautos!?
— Esses daí eu não sei, mas…
Água no pescoço. Atravessando ausências. Informações queimando a pele. Conhecimentos esparramados em camadas putrefatas de cebolas metálicas.
— Você tamém ôvi, prof?
— O quê?
— Révi Meti…muito bom!
Professor não ri. Ri? Sofre. Língua Inglesa. Portuguesa. Do Brasil.
— Aqui… a língua é dos manu, véi! Tá reprendidu! Ói! Acorda aí, prof!
O trabalho acontecia assim. Entre bandeiras de perigo e lago seco. Oceano. O que tensionava as aulas de Sociologia não era apenas o discurso. Era. Sempre. Óbvio. Mas o lugar dele, esse…
— Di quem, pró?
— Quando falamos, nos revelamos. Ou melhor, vivemos dentro de uma sociedade, com ideologias que nos afetam e ao mesmo tampo … a nossa identidade…
— Tá ligadu, meu! Hoji cê tá manotano dimais! Num leu aqueli negóciu lá du Enein, prof?
— A… prova de produção de texto?
— Não! A redação, manu! Falava dus rezistru.
A linguagem não criava barreiras. Registros de fala são abundantes. Importantes. E ele jamais cometeria o crime de impor regras à oralização. Diziam de si com imperiosas marcas de lugar e de fatos. Falavam. Falavam-lhe. Isso era bem mais do que muitos professores poderiam querer. Preocupava-se com as informações. Desviadas. Manipuladas. Um crime. Um golpe diário na formação da cidadania. As informações, excessivas e dirigidas, faziam água. Construir sentidos em tempos tão opacos e saturados era como trilhar um caminho de gelo em pleno sol do deserto. Afogando-se no seco. Contemplando as consequências. Reconhecendo as rupturas erigidas em decisões políticas. Renascimento de projetos do não dizer. Não pensar. Cortes nas ciências. Aqueles e aquelas estudantes pulsavam potências. Saúdes no corpo. Mas a formação reflexiva estava em débito. Achatavam-se as possibilidades de crescimento. Leituras do estar e ser.
— Tá filós…fisolo..
— Filosofando? Pode ser, a Sociologia propõe que pensemos sobre o real e a realidade.
— A neeim! Issu daí não enchi barriga! Podis crê! Tô na minha!
— A Sociologia pose nos ajudar a compreender o mundo, a refletir sobre… a vida e …
— Taí, meu! Você não iscondi o jogo, prof!
— Explica!
— Cê é du vermeio, véi. Sabi, a coisa di cortá o dedo di propósitu, tendi?
— Não!
— Ô, prof! Cê é inteligenti, manu! Faiz isso não! A genti sabi das coisa. Sem mané, véi.
— Eu preciso pensar… pensar para…
— Cê pensa dimais e dá bololô, saca?
Conhecia os meninos e as meninas daquela comunidade. Um a um. Era a sua comunidade. Nascera e crescera ali. Não vira o tempo entornar o caldo. Afundar o barco. Perder o remo. Onde estivera enquanto tudo aquilo se construía? Destruía. Adolescentes tragados pela manipulação da memória metálica.
— Ó! Di boa, diz uma aí, prof!
— Uma?
— Das música. Diz! Essa banda é mara, meu!
— Verdade, para quem gosta do estilo…
— Tamu falano di música. Nada di moda aqui, a neem!
Lá, no fundo do currículo, alguém falava em gênero textual. E falava mal, na sua opinião. Ensinar gênero, não se ensina: pratica-se. Em mar bravo, recita-se. Qual mesmo o gênero da oração?
— Tá brabu aí, véi! Todu mundu sabi qui oração num tem sexo, prof! Passô das conta, manu!
— Tem razão! Tô ligadu nessa! Di rocha!
Ondas de apoio tomaram o barco. Sem remo. Mas junto com o vento que brisava a manhã, o professor respirou. Fundo. Concentrado. Firme. A língua não é morta, Inês! Não era tarde para mergulhar. Melhor apurar equipamentos. Conhecimentos. Experiências.
— Cê tá muitu du isquisitu hoji, prof!
— Tá suavi, manu! Vamos nessa!
Os manus corrigiram a regência: Vamu! Vamu que simbora é pôcu pra um oceano tão renti. De frente à praia. Sobreviventes. Resistentes. Caminhando sobre a água. Impossível. Impraticável. Entre os dedos da mão escorre mel. Babas. O possível é um fato que depende da…
— Muitu líquidu, professor.
— Verdade! Cê tem razão! Vamos em busca de terra firme!
— Tá pareceno a profi dus purtuguêis…ela ama poesia.
— E vocês?
— Botu fé!
— Mesmo?
— Por que si ispantô? Nóis até feiz um sarau…
— É! E dizemus poema.
— Dizemu! Cantamu…dançamu…
— Tô ligadu! Ligadão! Ligadaçu!
— É Sociologia, profi!
Do riso fez-se lux. Não o sabão. Perfumado. Mas aquela nesga que dói ao romper as tramas do obscurantismo. Dói e não passa. Por isso fica. Acontece. Roendo as unhas do pensamento, o professor tomou o remo.
— A neeem! Voltô prás água!
— E a vacina?
— Ah…eu… num dá! Prá mais dos chipe tem… tem a coisa du… du vírus dus … dus via…
— … aceita um desafio?
— Dependi..
— Tamu juntu, manu! Vamu dá uma coça nessa…
— Nuuu! U prof é di briga, meu!
— Mais ou menus…eu tô falando de…
— Di metáfora nóis intendi. Pó dexá, prof!
*Baseado em fatos reais.
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