Há cerca de 20 anos, mais precisamente em 2001, em um número dedicado às mulheres intelectuais publicado na revista Clio: Femmes. Genre. Histoire, a historiadora francesa Florence Rochefort, em seu texto À la découverte des intellectuelles, constatava que as mulheres como intelectuais ainda se constituíam como uma esfera pouco explorada nas pesquisas e nos provocava a ampliar nossos olhares para além dos limites disciplinares e temáticos, os quais formam quase um reduto para as pesquisas sobre as mulheres.
Em sua argumentação, postulava que nem a História das mulheres, nem os estudos de gênero colocaram diretamente a questão da intelectual. A justificativa poderia estar relacionada aos caminhos teóricos que esses campos de produção acabaram por tomar, privilegiando análises da dominação masculina, da separação das esferas públicas e privadas e da construção social do masculino e feminino. Sem dúvida nenhuma, esse arcabouço teórico trouxe à luz as engrenagens da exclusão das mulheres do saber e dos espaços de exercício do poder político e intelectual, chamando a atenção para violências materiais e simbólicas que se constituem pela questão de gênero.
Todavia, como ela mesma aponta, há um conjunto significativo de pesquisas pondo em evidência que, apesar de tudo, de todas as interdições e exclusões, muitas mulheres tiveram acesso ao conhecimento, à ciência, à cultura e participaram da vida intelectual e política de seu tempo, a partir de seus diferentes contextos. Algumas delas foram estudadas em seus domínios de intervenção. No caso do Brasil, esses domínios passam pela literatura, feminismo, educação, saúde, ciência e política. As pesquisas, no entanto, raramente discutem essas mulheres como intelectuais.
O apagamento das mulheres em nossa história intelectual revela um lugar de subalternidade produzido, em primeira instância, em função da sua condição de gênero. Mulheres brancas, de classe socialmente privilegiada, com vasto repertório intelectual e cultural ousaram extrapolar os limites sociais que lhe foram prescritos e também foram apagadas, apesar de terem produzido saberes relacionados às demandas de seu tempo, às causas que optaram por abraçar, aos seus interesses e gostos pessoais, esses tão característicos da condição de sujeito. Aliás, uma condição negada às mulheres na história, mesmo na educação, campo tradicionalmente associado à esfera feminina.
Seguindo essa esteira da educação, é curioso notar que em nossos cursos de licenciatura e, dentre eles, incluo a Pedagogia, as mulheres raramente aparecem nas bibliografias. Os pensadores da educação, os intelectuais da educação, geralmente são homens, constituídos como as referências do pensamento educacional, salvo duas ou três exceções. Parece que aí, também, às mulheres foi reservada a tarefa do fazer, mas não a de pensar. Será mesmo que elas não ousaram pensar ou será que seu pensar foi apagado da história?
A negação histórica do reconhecimento das mulheres como intelectuais nos leva a reproduzir essa cultura de apagamento, inconscientemente, materializando-a em nossos cursos sobre intelectuais, em nossos recortes de pesquisa, em nossa historiografia. Temos realmente deixado de lado as intérpretes e construtoras do Brasil que, lado a lado com os homens, em convergência ou concorrência, elaboraram e disputaram modelos de sociedade a partir dos projetos de nação que abraçaram.
Um exemplo, que curiosamente me caiu nas mãos recentemente, é o livro Intérpretes do Brasil, organizado pelos professores Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Ferreira Secco. A obra traz 25 intérpretes do Brasil e nenhuma mulher dentre eles, embora haja mulheres autoras. Mas este está longe de ser um caso isolado. Temos aí o reflexo de uma tradição instituída em torno da produção de um não-lugar para as mulheres no campo intelectual. Depois de vinte anos, a constatação de Florence Rochefort ainda permanece.
Desse modo, atentar para as mulheres e para as formas como viveram, tanto em suas experiências privadas quanto públicas, entender suas ações, suas escolhas, seus caminhos, longe de ter um sentido laudatório, tem um sentido de compreender a história considerando seus diferentes atores e atrizes, ouvindo suas vozes, evitando o perigo da história única, produzida pelos grupos que controlam a narrativa, em larga medida compostos por homens, brancos, de classe socialmente privilegiada e ocidentais.
Enfatizar o artigo feminino ao falar de intelectuais tem, sem dúvida, um sentido político de reivindicação de um lugar que passa, sobretudo, pela desconstrução de uma imagem de mulher associada muito mais ao campo dos fazeres do que dos saberes. Mas, talvez, como uma chave de leitura para entender a construção desse outro lugar possamos pensar que foi aí – entre fazeres e saberes – que muitas mulheres se constituíram como intelectuais, negociando no terreno do possível a conquista de outros espaços.
Imagem de destaque: Adli Wahid / Unsplash