Políticas públicas e desigualdades: reflexões a partir do cinema

Paloma Coelho*

Na tela escura, se ouve um interrogatório, conduzido por uma voz calma e educada. O diálogo, que começa em tom amistoso, logo se revela como um impasse, na medida em que o interrogado se mostra cada vez mais impaciente. Do outro lado, a agente do Estado permanece fiel ao protocolo, repetindo insistentemente que o homem se limite a responder às suas perguntas. No final, a imagem revela, em primeiro plano, o rosto de um homem cansado, desacreditado, que reclama da morosidade dos trâmites burocráticos enquanto apela para a interlocutora ir direto ao assunto e abordar a sua doença cardíaca.

A cena descrita é do filme Eu, Daniel Blake, de Ken Loach. O personagem do título é um carpinteiro que após descobrir uma doença cardíaca, é afastado do trabalho e solicita ao governo uma pensão por invalidez. A narrativa acompanha o percurso do protagonista entre idas e vindas ao órgão previdenciário, inúmeras entrevistas e formulários preenchidos, longas ligações na tentativa – em vão – de atendimento pelo call center. A burocracia, a falta de flexibilidade e de empatia, a frieza dos profissionais que o atendem, somadas às dificuldades de Daniel – com pouca escolaridade e qualificação – para se adaptar a uma nova lógica profissional, altamente tecnológica e impessoal, o levam a uma situação de grande precariedade.

Guardadas as especificidades do contexto político e social inglês – bem diferentes da realidade brasileira -, o cenário retratado no filme é interessante para se pensar no papel do Estado na elaboração de políticas capazes de atender às demandas de uma população que se encontra à margem de uma estrutura econômica baseada no capitalismo financeirizado, na especulação imobiliária, na crescente informatização, precarização e aumento da informalidade no mercado de trabalho. Pessoas que, ao serem expulsas para as periferias dos grandes centros urbanos, ficam sujeitas ao abandono e à reprodução de desigualdades, uma vez que a distância física implica na falta de acesso aos recursos necessários ao bem-estar social, como saúde, educação, trabalho e moradia.

Essas desigualdades, em momentos críticos como a atual pandemia do coronavírus, desvelam a maior situação de vulnerabilidade de certos grupos, muito mais expostos às consequências de uma crise sanitária, mas também econômica e política. As desvantagens sociais, resultantes de longos anos de dissolução de políticas sociais e de redução de investimentos públicos, se agravam ainda mais quando consideradas a partir da perspectiva interseccional: nota-se a maior precariedade de mulheres pobres, negras, moradoras de periferias, chefes de família e trabalhadoras informais. O quadro da pandemia tem evidenciado a importância das políticas públicas, tanto no enfrentamento da doença, com a atuação do SUS, das universidades e dos institutos de pesquisa, como na provisão de recursos fundamentais para uma vida digna, como educação de qualidade, inclusão no mercado de trabalho formal, seguridade social,  acesso à moradia e à infra-estrutura urbana.

Em tempos de acirramento da lógica neoliberal, muito se fala em desaparecimento gradual do Estado, mas, como afirma Pierre Bourdieu, o que ocorre é o deslocamento da sua centralidade: encolhimento no plano econômico (menos interferência no campo do trabalho e na operacionalização do capital) e no social (menos assistência à saúde, educação, previdência e habitação), maximização na esfera policial e penal (mais intruso, punitivo e paternalista). Ou seja, trata-se da legitimação da passagem do tratamento social para o tratamento policial e penal da miséria. A saga de Daniel Blake expressa bem a ordem neoliberal ao retratar a anulação política de populações específicas. Cansado do descaso e das humilhações, ele expõe a sua indignação pichando o muro do órgão de segurança social. Nesse momento, o Estado, até então ausente, é infalível ao puní-lo pela infração: a polícia imediatamente aparece para prendê-lo.

O trágico destino do personagem traz à tona a necropolítica exercida pelos Estados, que se expressa pelo direito de matar (Mbembe), mas também pela morte simbólica dos  sujeitos indesejáveis – pelo silenciamento, invisibilidade, marginalização e desumanização. Para Bourdieu, não basta executar políticas públicas, é fundamental transformar os sistemas simbólicos que operam nas práticas cotidianas, o que requer um processo de mudança na educação e nas formas de ver o mundo. Nesse sentido, cabe refletir sobre o papel preponderante do sistema de ensino na ruptura do ciclo de reprodução das desigualdades, ao possibilitar aos sujeitos acessarem uma gama de recursos e oportunidades necessários a uma vida mais justa e menos desigual.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2008.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 122-151, dez. 2016.

*Pós-doutoranda da Fiocruz Minas

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.


Imagem de destaque: British Film Institute

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