Por Luciano Mendes de Faria Filho
Já é amplamente estabelecida no Brasil a ideia de que nosso federalismo não deu certo ou, no mínimo, que é muito canhestro. As imensas desigualdades entre os estados acabam, no plano da Federação, por dificultar ou, mesmo, impedir que as diferenças entre os entes federados contribuam para enriquecer a construção e a consolidação de projetos realmente nacionais.
Se tal fenômeno, olhado sob o prisma histórico da construção da nação e do estado brasileiro, é uma constante, ele é agravado enormemente quando o governo federal abdica de sua função redistributiva, momento em que as desigualdades se agravam, com claras conotações políticas e econômicas na vida cotidiana e na condução dos destinos do país.
Há uma hiperconcentração de recursos nas mãos do governo federal, concentração essa que não se coaduna com a divisão de responsabilidades entre os entes federados, inclusive no campo da ciência e da tecnologia. Mesmo que os órgãos nacionais (MCTIC/CNPq/FINEP; MEC/CAPES) tenham se empenhado em assumir um papel redistributivo importante, isso não têm impedido a concentração histórica das instituições de pesquisa e de pesquisadores na região centro-sul do país. Uma das razões disso, além da ausência de um Projeto Nacional de C&TI, é que o poder desigual de investimento das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa acaba por agravar ainda mais as desigualdades.
Nesse cenário, a dificuldade de investimento dos órgãos federais de C&TI que vivemos atualmente, e que certamente se agravará com a possível aprovação da reforma do Estado proposta pelo governo, poderá ter um efeito devastador e catastrófico no sistema de C&T no Brasil, colocando em questão, talvez de forma definitiva, a possibilidade de um sistema efetivamente nacional no setor.
Todos os dados, seja em relação à pós-graduação brasileira, seja em relação à produção científica que a acompanha, já demonstram uma hiperconcentração na região centro-sul do país, com um claro predomínio paulista no sistema. É evidente que tal concentração se realiza e se expande pela concentração dos recursos financeiros, na clara realização, nesse campo, do chamado “efeito Mateus”: quem mais tem hoje mais ainda terá amanhã!!!
Para se ter uma ideia da concentração de recursos de origem federal, pesquisa realizada por Bruno Azevedo Moura mostra que 6 instituições do Sudeste concentram mais de 40% dos recursos de estimulo à pesquisa distribuídos pelo CNPq em 2011. Do mesmo modo, ele mostra que apenas as três universidades estaduais paulistas mobilizaram quase 25% dos recursos do CNPq na mesma modalidade, sendo que apenas a USP recebeu quase 16% do total distribuído pelo CNPq naquele ano. [1]
Não tenho dados organizados para saber se de lá para cá esse processo de concentração aumentou ou diminuiu. É bem possível que tenha diminuído, sobretudo após a adoção de mecanismos de correção das desigualdades inter-regionais adotados em alguns editais. Mas, definitivamente, o problema não está resolvido. Pelo contrário, com a crise recente do sistema de fomento federal que, repito, será agravada pelas reformas propostas pelo governo Temer, a tendência é que a concentração de recursos e instituições volte a aumentar em benefício do centro-sul do país.
Para terminar, gostaria de explicitar, em dois exemplos, o significado perverso da diminuição de recursos da esfera federal. O primeiro é o do Rio de Janeiro. O Estado tem uma das maiores e mais importantes infra-estruturas de pesquisa do país. Essa infra-estrutura é mantida com forte aporte de recursos nacionais e, não menos importante, da FAPERJ. No entanto, com a crise financeira vivida pelo Estado, a Fundação de Amparo encontra sérios problemas em arcar com os compromissos já assumidos e não está no horizonte imediato voltar à normalidade. Pelo contrário, há vários projetos para diminuir o percentual de impostos repassados à Fundação. A desestruturação da FAPERJ, o terceiro maior orçamento do país em se tratando de Fundação estadual de apoio à pesquisa, aliada à diminuição dos recursos federais pode ter efeitos catastróficos não apenas no financiamento da pesquisa corrente, mas na própria manutenção da estrutura de pesquisa que demorou décadas para se consolidar.
O outro exemplo vai na direção contrária a este, mas não é menos preocupante se tivermos como horizonte a questão da Federação: trata-se do caso de São Paulo. A presença da FAPESP é sentida em todo o sistema nacional de C&T, não apenas por ser a mais antiga, por ser o maior orçamento – o orçamento da FAPESP é igual ou maior do que a soma dos orçamentos de todas as outras FAPs -, mas também porque boa parte dos quadros dirigentes do sistema vem de São Paulo e tem como referência o funcionamento da Fundação e, é claro, as estaduais paulistas. Com a crise do sistema federal, a comunidade científica paulista, escudada na FAPESP e em sua capacidade de disputar recursos das agências federais, não apenas consolida e amplia sua presença no sistema – 1/3 dos INCTs em funcionamento ou em implantação neste momento estão sediados em São Paulo – mas, também, e de forma agressiva, amplia seu lugar na comunidade científica internacional.
A respeito da internacionalização, é importante salientar que, na esteira da crise de financiamento das agências federais, a FAPESP passou a assumir um inusitado, mas justificado, protagonismo na alavancagem da internacionalização do “sistema paulista de C&TI”, inclusive pela assinatura de acordos com agências e órgãos estrangeiros que, em situação normal, seriam assinados pelo CNPq ou pela CAPES e teriam, assim, abrangência nacional.
É evidente que não se está, aqui, criticando o protagonismo da comunidade paulista e, muito menos da FAPESP. O que se faz é chamar a atenção para o efeito devastador que pode ter o aprofundamento da crise de financiamento das agências federais em todo o sistema ou, melhor, inclusive na manutenção do próprio sistema nacional de C&TI, profundamente dependente das verbas federais.
Para sair disso, sobretudo em tempos de crise, são necessárias políticas nacionais claras de C&TI, o que não temos visto muito nos últimos anos. Pelo contrário, há mais ações intempestivas e não planejadas, como o Programa Ciência sem Fronteiras, do que o estabelecimento de diretrizes claras. Mas, certamente não bastam políticas claras se o conjunto das instituições do sistema, aí incluindo as agências federais e estaduais de fomento, mas também, e sobretudo, as universidades, não atentarem para o fato de que precisam retomar a capacidade de planejamento e de coordenação. Isso porque, como sabemos, as distorções e concentrações que ocorrem no plano inter-regional se repetem no plano inter-regional e, não nos esqueçamos, inter e intra-institucional.
Serão as agências do sistema de C&TI e comunidade científica nacionais capazes de discutir saídas conjuntas e articuladas para a crise que estamos vivendo? Serão as instituições de pesquisa capazes de utilizar suas próprias expertises e o acúmulo de conhecimento e experiências nacionais e internacionais na administração universitária para tentarem diminuir o impacto da crise e, ao mesmo tempo, estabelecerem estratégias para avançarem na formação, na produção e divulgação de conhecimentos? Isso certamente pode não ser suficiente para evitar problemas maiores se os três poderes da República, com suas alianças regionais e locais, teimarem em conduzir o país para o passado, destruindo nossa infraestrutura produtiva, roubando nossos direitos e sucateando o sistema de C&TI. No entanto, uma tal atitude por parte das agências, da comunidade científica e das instituições pode minimizar o impacto da dificuldade de financiamento e criar condições para uma travessia menos turbulenta dos tempos sombrios que estamos vivendo.
[1] O professor Evando Mirra, leitor deste texto, me lembrou três coisas: a) que essa concentração regional da estrutura de C&TI é um fenômeno mundial, sobretudo em países de dimensões continentais como os EUA; b) que a concentração regional de recursos , no Brasil, já foi muito maior, chegando a quase 80%, no caso dos recursos no CNPq, empregados no centro-sul do país no início dos anos de 1990; c) c) que graças esforços das agências nacionais em desconcentrar a infraestrutura de pesquisa e, por conseguinte, os pesquisadores, bem como à ação as agências estaduais, atualmente tempos um sistema muito mais capitalizado, profissionalizado e competente em todo o país. E isso nos dá condições de enfrentar com mais vigor os problemas posto, hoje, para o sistema.