Pode a psicóloga cis escutar? 

Marcela de Oliveira Cardoso

Em uma sociedade de forjadas binariedades, as identificações se apresentam de maneira contrastantes e simplistas, marcadas pelas oposições entre si para existirem. Aprendemos, desde a educação primária até os ensinos superiores, sobre certo x errado e suas variadas maneiras de existir – além das estratégias de correção e adequação -, que permeiam pela marginalização e exclusão de determinados povos e populações.

Partindo da perspectiva binária civilizado x selvagem, adentramos nas dicotomias que sustentam os padrões de existência socialmente impostos, atravessando, enfaticamente, questões étnico-raciais, de sexualidade, gênero e classe, nas quais uma identidade se sobrepõe enquanto legítima em relação às outras, ditas dissidentes.

O homem, cis, branco, heterosexual e elitizado emerge como estereótipo da civilização, acarretando na deslegitimação das identificações que não corroborem com a referida performance e suscitando o não-lugar: aquele que não pertence, aquele que não existe.

Os estereótipos, padrões de ser e estar, determinam aos sujeitos/as/es dissidentes aquilo que é permitido, proibido ou prescrito expressar e sentir, garantindo-lhes, através da adequação, o direito de existir, seja enquanto sujeito/as/es psicossocial, seja enquanto comunidade histórico-social (SOUZA, 2021).

Enquanto estudante de psicologia, cis, negra, periférica, durante os anos de graduação, me questionava: e pode uma psicóloga negra falar? Em meio a teorias e intelectuais distantes da realidade afropindorâmica, como nomeia Nego Bispo, dentre Freuds, Lacans e Kleins: e pode uma psicóloga negra atuar?

O processo de retomada deste corpo-território escancara violências diárias, no entanto, ao reivindicar as pluriversalidades propostas por Lélia Gonzalez, Neusa Santos Souza, Megg Rayara Gomes de Oliveira, Letícia Nascimento, Jaqueline Gomes de Jesus, Viviane Vergueiro, Marcia Kambeba, Geni Nuñez, Eliana Potiguara, Sofia Favero, deparo-me com as possibilidades de vivenciar o corpo como local e fonte de vida e prazer (SOUZA, 2021), compreendendo nossa história para além das narrativas únicas – parafraseando Chimamanda Ngozi Adichie – e legitimando as plurais existências.

As identificações, ditas dissidentes, nos estimulam a romper com a universalidade. As escrevivências, como nomeia Conceição Evaristo, em primeira pessoa, nos permitem transgredir a dita neutralidade científica e abrem os caminhos para uma educação, ensino e aprendizagem, emancipatória. Afinal, a dita neutralidade está posicionada em concordância ao discurso colonial.

Faz-se necessário que os ambientes educacionais se apresentem como ponto de partida para ressignificar as referências de ensino e aprendizagem, compreendendo a realidade afropindorâmica para além da colonialidade dicotômica. Propõe-se descaravelizar, como nomeia Aline Kayapó, a educação: romper com o epistemicídio que a colonialidade invoca.

A cisnormatividade incita a “história única” das identificações de gênero ao enunciar a cisgeneridade como “normalidade” em contraste às transgeneridades e travestilidades, retomando a lógica binária e colonial (civilizado x selvagem) e posicionando-as no não-lugar de reconhecimento e pertencimento. Assim como a branquitude refere à “história única” das relações étnico-raciais, corroborando com a marginalização das identificações negras e indígenas.

Ao problematizar e questionar a dita “história única”, proponho que a ordem discursiva universal, neutra, é forjada em uma fantasia colonial. Convoco-nos a pensarmos sobre a miríade de vozes que expressam multidões de corporalidades possíveis, com plurais saberes, ensinamentos e aprendizados que podem expandir as significações nas interações sociais.

O paradigma da colonialidade – movimento de universalizar as existências – invalida o pertencimento de corpos-territórios que não se encaixem em sua padronização, negando a possibilidade de existir enquanto sujeito/a/e, censurando a intersubjetividade das populações dissidentes e rompendo com a comunicação entre saberes. Torna rígido algo que é fluído: a vivência.

Enquanto psicóloga, cis, negra, periférica, permaneço e (r)existo atuando no SUAS e no SUS, com um incômodo: nossas escutas são ensinadas a estimularem vozes ou silêncios?

“Diante da consciência do problema, posicionar-se diante dos seus pares profissionais para aperfeiçoar os processos de atendimento, contribuir com o conhecimento clínico e terapêutico e moralmente válida. Todas as outras alternativas são conformismo ou omissão” (DUMARESQ, 2016, p. 124) 

 

Para saber mais 
Dumaresq, Leila. Ensaio (travesti) sobre a escuta (cisgênera). Revista Periódicus, 1(5), 121–131. 2016.

Quijano, Aníbal. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena (Lima), vol. 12, n. 29, 1992.

Vergueiro, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Salvador, 2015.

Souza, Neusa Santos. Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

 

Sobre a autora
Graduada e Mestranda em Psicologia pela UNESP Assis, componho o grupo de pesquisa PsiCUqueer, com ênfase nos debates sobre relações étnico-raciais e identificações de gênero. Atualmente, atuando enquanto psicóloga em CAPS III, na região central de São Paulo, abordando questões de saúde mental e atenção psicossocial, evidenciando as infâncias e adolescências em situação de rua e uso abusivo de substâncias psicoativas na grande metrópole. Integrante do Coletivo Sankofa pelo Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil III Sé.


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