Uma conversa encaixada – gavetas recobertas

Ivane Perotti

Bancos, bancos e tamboretes parecem coabitar plenamente o universo dos descansos. Parecem. Desde que nós, operários da língua, saltemos a natureza das homonímias e ajustemos a polissemia de assento, nalgas e poupança. Signos dançam sem sair do lugar. Os linguísticos exigem mais do que enveredar pelos Tempos de Aprender (sem comentários fônicos) e os Graphogames com investimento federal na casa dos milhões. Investimento? Que as palavras garimpem por dias melhores nas teias dos discursos. Mas foi em um tamborete visivelmente despido de motivações estéticas que o passado se remendou. Apresentou-se, para alguns, em encaixada conversa. Glória Steinem falou primeiro:

— A verdade te libertará. Mas primeiro, ela vai te enfurecer.

Justiça seja feita, Glória tinha peito. O tamborete altiloquente estremece. Shakespeare tergiversa:

— O mundo inteiro é um palco. E todos os homens e mulheres não passam de meros atores. Eles entram e saem de cena e cada um, no seu tempo, representa diversos papéis.

Em voz, a também jornalista Martha Medeiros, emenda:

— Há homens que têm patroa. Há homens que têm mulher. E há mulheres que escolhem o que querem ser.

Cervantes, o Miguel de 400 tempos, interrompe:

— Os homens honrados casam-se rapidamente, os inteligentes nunca!

Inquieta pelo rumo do quiproquó, Steinem argui:

— Uma mulher sem um homem é como um peixe sem uma bicicleta.

Cervantes deixa no tamborete a dedução dos séculos pesados:

— A inveja vê sempre tudo com lentes de aumento que transformam pequenas coisas em grandiosas, anões em gigantes, indícios em certezas.

Rousseau contemporiza:

— Há um pequeno número de homens e mulheres que pensam por todos os outros, e para o qual todos os outros falam e agem.

Jean-Jacques sente na pele o sopro de Estagira enquanto Aristóteles destila-se na presença ausente. Mas é Drumond de Andrade quem toma o turno da fala:

— Os homens distinguem-se pelo que fazem e as mulheres, pelo que os levam a fazer.

Contrita, Frida Khalo interfere:

— A mim já não me resta a menor esperança… tudo se move ao compasso do que encerra a pança…

Sussurra a primogênita francesa, Simone de Beauvoir:

— É horrível assistir à agonia de uma esperança.

O autor de Les Misérables procura por entre os brancos fios de sua barba a frase dedilhada:

— Vós que sofreis de amor, amai ainda mais. Morrer de amor é viver dele.

A advertência sublinhada vem de Sartre, com As Palavras embaixo do braço:

—mCada homem deve inventar o seu caminho.

Gaston Bachelard filosofa com um pé na química:

— Ainda existem almas para as quais o amor é o contato de duas poesias, a fusão de dois devaneios.

Interfere Freud, o Sigmund da psicanálise:

— A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz.

O tamborete, até então silencioso, desbanca os intocáveis:

— Afinal, qual é o assunto? Nem todas as verdades são para todos os ouvidos!

— Ei! Essa frase é minha! Grita Umberto Eco, no vão de meio silêncio.

— E quem disse que eu a quero? responde o banco, soltando lascas da velha madeira.

— Precisamos resolver (…) nossa insanidade oculta! arremata Foucault.

O tamborete revolve-se em cena enviesando as pernas de pau:

— Decidam-se! qual é o tema?

Bakhtin concilia:

— Na verdade, não são palavras que pronunciamos ou escutamos…

Mas o tamborete segue surdo na retranca da participação.

— Por que vocês não discutem atualidades?

Foi o suficiente para as nalgas ausentes franquearem a balbúrdia. De peito, sem peito, de pinto, sem pinto, o pau quebrou. Conceitos têm raízes bailarinas e são dependentes sociais. Pensadores e pensamentos abrem e fecham gavetas epistemológicas na escrivaninha dos tempos. Alguns encalacram. De dívidas em dívidas metem-se em dificuldades.

— O que você entende por atualidades? — era Foucault e seu dom de perguntar à pergunta.

Tendo a brisa por testemunha, o tamborete deu de ombros. Que falassem. Imortalizaram-se pela boca. Que dela fizessem juízo. A pena não é pequena para os que pensam que pensar apensa. Os anexos endividam os homens.

— Contaminam… Contamina-se/vírus da desobediência/na mesmice da prosódia. – Em voz e corpo, sentava-se o grande poeta Pedro Américo de Farias.

— Assentava-se.

— Sentava!

— É meu este céu /tão lúcido…

— Ah! Não, Maria do Socorro Nunes… você está casada com a poesia! Duas vezes!

— …nenhum poema nasce pronto… – ouviu-se Socorro recitar mais alto, já no tamborete, ao lado do esposo.

O banco que não era banco cedeu. Impossível contestar uma aliança poética.

— …enquanto calas/tinge de branco/a cor do algodão… – a poeta sorri, enquanto as palavras doces escorrem mel pelos cantos da boca.


Imagem de destaque: Jason Leung / Unsplash

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