Um tal de coronavírus: o que as crianças vão guardar da pandemia?

Rúbia Lisboa¹

Coletivo Geral Infâncias

Alguém já se perguntou sobre o que faremos com as impressões e as reflexões das crianças sobre o que foi (e vem sendo), para elas, viver a pandemia?

Este foi um dos assuntos principais em mais um encontro do Coletivo Geral Infâncias na ocupação Dandara em Belo Horizonte/MG, que tive a honra de participar pela primeira vez.

Para quem não conhece, Dandara possui 2 mil famílias, numa área de 40 hectares, sendo um dos maiores conflitos sociais de moradia do Estado de Minas Gerais. Com o nome da esposa de Zumbi dos Palmares, em homenagem à importância das mulheres negras nas construções coletivas, a ocupação conseguiu na justiça a legitimidade para fazer uso do terreno e vêm escrevendo a sua própria história.

Voltando aos seus pequenos moradores, depois de tanto tempo longe da escola, aumento do desemprego de seus pais ou responsáveis, dentre outros problemas acirrados pela pandemia, não podemos nos esquecer que eles ficaram ou ainda estão (devido ao descaso político com as nossas crianças) à margem dos cuidados necessários para amenizar os impactos do coronavírus em suas vidas.

Se o afeto reduz danos, as manhãs de sábado com os meninos e as meninas da Dandara sem dúvidas estão sendo fundamentais para a diversão e a sensibilização acerca de temas condizentes com o momento atual, escuta e muito carinho para aqueles que viram na pandemia uma quase interrupção de suas infâncias.

Após um café da manhã delicioso e muitas brincadeiras, pude pela primeira vez realizar uma contação de história sobre o meu livro infantil “Um tal de coronavírus”, que busca alternativas para que os pequenos possam enfrentar o momento ainda atípico de forma mais leve.

Nele conto a história da minha filha Iasmin que estava no auge da sua primeira infância (quando tudo começou), e do seu fantástico mundo da imaginação, se aventurando no novo normal, causado pela invasão do coronavírus. “Iasmin que tem o nome da flor de jasmim e o cabelo black feito nuvem de algodão” todos os dias pedia ao “Papai do Céu” para que tudo terminasse logo e descobriu que além dos cuidados necessários devido a pandemia, somente os superpoderes do carinho e amor pelo próximo poderiam (e ainda podem) curar o planeta e os nossos corações.

“Iasmin que tem o nome da flor de jasmim e o cabelo Black feito uma nuvem de algodão, toda noite diz ao Papai do Céu que não aguenta mais esse tal de coronavírus não” (trecho do livro “Um tal de coronavírus”).

Durante a contação desta história as crianças compartilharam as suas experiências causadas pela pandemia, relataram as formas que encontraram para aprender e brincar durante tanto tempo em casa, fizeram experimentos práticos que renderam boas gargalhadas, mas que não deram muito certo sem a proximidade de um coleguinha, como por exemplo, uma adoleta sem dar as mãos! 

“Brincamos muito de casinha e cada hora um cuidava do outro. Não tem jeito de brincar de adoleta sem dar as mãos” (a meninada contava e reclamava).

Por último, tentaram explicar seus sentimentos ao contar sobre uma saudade causada por este vírus de nome esquisito e, finalizaram com mais brincadeiras, pois é assim que elas se expressam e contextualizam as mais diversas situações, o que foi incrível!

“Soube que esse moço de nome esquisito é menor que a menor das bolinhas de gude ou bolhas de sabão e, fez todo mundo ficar dodói e lavar as mãos. Até o Cascão!” (trecho do livro “Um tal de coronavírus”).

Além disso, tento trabalhar no livro o processo de repetição que ajuda no aprendizado do vocabulário dos pequenos em fase de alfabetização e que vão absorver de forma divertida o conteúdo apresentado. E não é que eles já estavam praticamente decorando tudo?!

Na obra também fiz questão de reforçar o protagonismo negro, uma vez que a personagem principal é a minha filha, e tal como a maioria das crianças da Dandara e todas as crianças negras do nosso país, raramente se encontram ou se reconhecem na literatura infantil. Acredito fielmente que incorporar a representatividade em todos os meios de aprendizado e comunicação é fundamental para que todas as crianças apreciem (e respeitem) não somente um padrão de beleza.

A proposta foi possibilitar aos pequeninos uma maneira de encontrar boas lembranças e boas histórias para contar, mesmo depois de um momento tão difícil e de tanta dor. Reforçar os cuidados necessários na pandemia que ainda não acabou, bem como a importância da esperança e da criatividade em se reinventar diante das novas rotinas, permitindo de alguma forma um “quentinho” no coração de todos nós.

Acho que conseguimos! 

1 – Rúbia Lisboa é mãe da Iasmin, mineira de BH, jornalista e especialista em Intervenção Psicossocial no Contexto das Políticas Públicas. Autora do blog Pois É, Sou Mãe!, em fevereiro de 2021 publicou o seu primeiro livro infantil, ‘Um tal de Coronavírus’ (Editora Clube da Leitura), e em março de 2021 foi vencedora da chamada literária NuaFest com o livro ‘Do Feminismo Para Quem ao Feminismo Negro (Editora Nua). E-mail: rubiaslisboa@gmail.com.


Imagem de destaque: Fotografia de um dia de atividade que integra o projeto Coletivo em Diálogo, do Coletivo Geral Infâncias, junto à comunidade da Ocupação Dandara.

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