Sobre pontes e a verdade

Octávio Henrique Bernardino Ribeiro¹

O dono da verdade é um senhor egoísta. Quando passeiam, ela o acompanha com uma coleira que a sufoca toda vez que ousa avançar poucos passos à frente do caminhar arrastado e retardatário do obsoleto proprietário. As mãos puídas se agarram firmes nas grossas certezas acorrentadas à peça de couro rudimentar que cinge o pescoço da convicção de estimação.

Originalmente, a verdade é fluida e por esse motivo requer uma dieta especial, sua alimentação deve ser diversa e rica em nutrientes e temperança, no entanto, seu dono não enxerga a peculiaridade de sua forma, talvez por sua visão gasta ou pelos óculos com foco inflexível. Sendo assim, a verdade se alimenta dos restos daquilo que o senhorio consome e, assim, cada vez mais ela fica indisposta e engessada.

Como todo bichano, o comportamento da verdade está condicionado à criação de seu dono, por esse motivo várias vezes ela é agressiva e avança naqueles que são estranhos aos olhos de seu possuinte. Com seu ladrar pela potente garganta que possui, ela busca sobrepor os argumentos de quem tenta se aproximar, além disso, apresenta os dentes afiados como uma amostra de sua ferocidade.

O dono da verdade se sente livre para transitar em quase todos os espaços, inclusive aqueles aos quais não foi chamado. E isso é uma espécie de segurança que sua fiel companheira passa. Em algumas oportunidades em que está cansado das discussões cotidianas que se alongam, o senhor monta em sua verdade e deixa que ela o leve no rumo de seu faro.

Porém, em posse da verdade, o dono busca ocultar sua fobia particular, a gefirofobia. Para quem não sabe, esta palavra incomum representa o medo exagerado ou irracional que algumas pessoas têm de atravessar pontes.

As pontes são muito interessantes de se observar, sobrepostas a um caminho que certamente não seríamos capazes de atravessar sem seu auxílio, balançam criando temor. Precisamos atravessar as pontes para alcançarmos o destino pretendido, e isso fica mais fácil quando descobrimos que seu balanço é proposital e necessário, caso contrário, a estrutura se romperia.

O dono da verdade detém várias fobias e intolerâncias, mas é curioso o motivo em esconder unicamente que é gefirofóbico: com o perdão da palavra, intolerante a pontes. Quando atravessamos uma ponte estamos sobre as alturas e o que nos mantém seguros para seguirmos nossa trajetória é imaginarmos que chegaremos a seu fim. Então, há aqueles que sempre olham para baixo para confirmar a bravura de seu feito e há aqueles que evitam este movimento, mas à sua maneira as atravessam.

Já o dono da verdade, agarrado à forma rígida que sua mascote assumiu, teme não chegar do outro lado. E isso acontece porque as correntes a que ele se agarrava para ter certeza daquilo que acredita ser, se tornam o motivo de sua clausura. Debaixo de seus pés está o incógnito, o senhor que por ora se via como um rompante de fronteiras agora teme que sua própria verdade, aquela que tanto aprecia e havia criado com fervor, torne-se uma bola de ferro em seu tornozelo que escapole da ponte e o leva para a queda.

A verdade é dura para quem tenta tomar sua posse, talvez seja bicho pra criar solto, voando livre pelos campos, correndo sorrateira nas esquinas. Ou, quem sabe, a verdade não se cria, talvez ela seja construída com um pouco de opinião aqui e acolá. É importante não esquecermos das pontes, assim como a verdade elas não podem ser rígidas, as chamadas “juntas de dilatação” servem para que elas sejam transigentes. Mesmo aquelas com que nos deparamos e não sabemos como foram construídas, aquelas em que não confiamos, aquelas que caíram, as interditadas, as que surgirão por caminhos nos quais percebamos que vamos precisar de uma… As pontes nos levaram e levarão a destinos, assim como as verdades, que podem ou não nos ajudar a atravessá-las.

A educação libertadora é o alicerce, as ferramentas utilizadas pesam menos às mãos, mas mais ao intelecto, a EJA é um exemplo deste trabalho conjunto em atravessar as adversidades, ainda que a vida seja dura, acreditar nessa luta constrói pontes. 

 

1Professor da Rede Estadual de Educação de Minas Gerais e de cursinhos populares. Licenciado em História (FAFICH/UFMG). Especialista em ensino de História (PUC/MG). Mestrando do Promestre na linha da EJA (FAE/UFMG).


Imagem de Destaque: Tama66/Pixabay

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *