Sobre memórias e escritos

Marileide Lázara Cassoli

Falar sobre o ano de 2020 é uma tarefa hercúlea! A multiplicidade de temas a serem abordados e debatidos – e aqueles que foram, efetivamente, abordados e debatidos – provocou a efervescência das lives [propiciadas pela tecnologia], possibilitando que as vozes não tenham sido caladas. Mesmo aquelas pessoas que não usufruíram [ou usufruíram precariamente] das diferentes formas de conexão à internet foram contempladas nestes debates. A questão da democratização do acesso tecnológico ganhou amplitude e visibilidade pelos impactos [negativos] na educação e na mitigação das vulnerabilidades que parte significativa de nossa população enfrentou, enfrenta e enfrentará, diante das incertezas e titubeios governamentais, em todas as suas instâncias e diferentes partes deste nosso país/continente. Nem por força da profissão [de historiadora] me atreveria a fazer esse balanço!

Contudo, como esta é uma coluna, como o próprio nome indica, de e sobre memórias registradas por meio da escrita. Gostaria de deixar, nesta última edição de 2020, dois pequenos textos de um autor/livro que me acompanha constantemente e, a cada nova leitura, me surpreende. Compartilho estas palavras que não são minhas, mas que, penso eu, traduzem o mundo com poesia:

O livro dos abraços, de Eduardo Galeano.

A paixão de dizer/2

Esse homem, ou mulher, está grávido de muita gente. Gente que sai por seus poros. Assim mostram, em figuras de barro, os índios do Novo México: o narrador, o que conta a memória coletiva, está todo brotado de pessoinhas (p. 18).

Celebração de bodas da razão com o coração

Para que a gente escreve, se não é para juntar nossos pedacinhos? Desde que entramos na escola ou na igreja, a educação nos esquarteja: nos ensina a divorciar a alma do corpo e a razão do coração. Sábios doutores de Ética e Moral serão os pescadores das costas colombianas, que inventaram a palavra sentipensador para definir a linguagem que diz a verdade (p. 119).

Não sei muito bem como finalizar este meu escrito. Este ano tive a minha primeira turma de pós-graduandos em História. Oferecemos uma disciplina “a quatro mãos”, pois éramos duas professoras, voltada para as fontes e metodologias de pesquisa. Uma turma de trinta e três estudantes. Juntos, vencemos os percalços das aulas remotas. Ao final do curso me despedi com este mesmo texto de Galeano, A paixão de dizer/2, que agora compartilho com as leitoras e leitores desta coluna. Não conseguia parar de pensar em todas aquelas pesquisas cujos temas farão brotar inúmeras “pessoinhas”. Muitas delas, vozes caladas por muitos e muitos anos. Serão então incorporadas à memória coletiva em constante construção, alimentadas pelas pesquisas nas mais diversas áreas do conhecimento. Mantenho a esperança que serão todas “sentipensadoras”. E já as admiro. Pois seus narradores são símbolos da resistência às dificuldades impostas à pesquisa e ao ensino público em nosso país. Dedico este texto a todas narradoras e narradores que que regaram os brotos e ficaram carregadas e carregados de pessoinhas.


Imagem de destaque: meineresterampe / Pixabay

 

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