Razão e ciência para uma agenda democrática

Alexandre Fernandez Vaz

No último domingo pudemos assistir o bizarro espetáculo proporcionado pelo presidente da República, que em meio à pandemia do coronavírus, não apenas incentivou sua claque a ir às ruas afrontar o Legislativo e o Judiciário, como ele mesmo congratulou com seguidores, cumprimentando-os e fotografando-se em selfs. Além de tentar desequilibrar os poderes constitucionais, Jair Messias Bolsonaro estava sob suspeita de infecção viral, tendo agido de forma diametralmente oposta ao que o ministério da saúde de seu próprio governo indicava como o melhor a fazer. Poucos dias antes, aliás, o mandatário aparecera em rede nacional aconselhando a cessão do ato que antes apoiara, mas que, mudando outra vez de posição, logo voltaria a apoiar.

Mas isso tudo, apesar das consequências perigosas para a democracia e a saúde pública, é apenas sintoma. O que se consolida como marca indelével do governo atual é o irracionalismo, a inverdade (onde estão as provas de que as eleições de 2018 foram fraudadas?), a prática do anti-intelectualismo. Se há algo pelo qual o presidente da República tem enorme apego é pelo descrédito da razão e da ciência. Em sua opinião inicial, havia muita histeria em relação ao coronavírus, cuja origem se dava, aliás, por interesses econômicos inconfessáveis. Parece que sua posição mudou, não se sabe bem. Mas o que interessa a opinião dele frente ao consenso científico de que se trata de uma pandemia e que o que há para ser discutido são as formas de controlá-lo ou ao menos diminuir seus impactos? Não, a opinião de Bolsonaro nada vale – tampouco a do líder religioso irresponsável que atribuiu a doença a satanás – simplesmente porque não se trata de opinar sobre o tema, mas de tratá-lo com os conhecimentos que a ciência produziu e produz. De um presidente, poderíamos esperar liderança política, o que, no entanto, só seria possível caso não fosse ele o atual inquilino do Alvorada.

Como o ridículo é um estágio que, paradoxalmente, não tem limites – estado que às vezes sabemos como começa, mas jamais como termina – a coisa deve seguir. Não foi a primeira vez que o presidente nos proporcionou um espetáculo sem sentido, tampouco a última. Há poucos dias, depois de ser chamado de líder político e espiritual da nação (!), Bolsonaro foi instado a compor um coro com seguidores em frente ao Palácio do Planalto para profetizar o fim do coronavírus no Brasil.

O que me deixa atônito, no entanto, é o fato de me sentir condenado a levar a sério o que teria que ser, no máximo, alvo de galhofa. A propósito, o humor é importante para a vida, inclusive como forma de resistência ao autoritarismo – e não como sua confirmação, a exemplo do palhaço que mimetiza o presidente –, mas ele não pode fazer esquecer a situação em que estamos metidos. Ou, dito de outra forma, a situação em que nos metemos.

Sim, nós temos parte nisso. É preciso pensar um pouco sobre o papel desempenhado pelas forças democráticas para a constituição desse descalabro. Não se trata de autoflagelação ou coisa que o valha, mas de perguntar qual é a nossa responsabilidade para chegarmos a tal ponto de rebaixamento político e de vulgaridade governamental. Autocrítica.

Ingenuamente, não esperávamos que o país pudesse regredir ao ponto de eleger um presidente que é francamente antidemocrático. Sim, sei que houve um ataque desenfreado ao sistema político por parte do partido da justiça (tomo emprestada a expressão de André Singer) e de setores importantes da imprensa às forças de esquerda; que o Partido dos Trabalhadores teve a presidente Dilma cassada e Lula, favorito às eleições, encarcerado; que houve um sem-número de notícias falsas circulando etc. A derrota mostra, no entanto, nossa impotência em enfrentar, de forma efetiva, esse tipo de ação, nossa dificuldade em ajudar a construir uma esfera pública em que isso não pudesse ter lugar. Tal movimento passa, claro, pela educação, de maneira que, por exemplo, notícias inverossímeis e absurdas, as fake news, não encontrassem eco.

Embora alguns digam o contrário, a razão e a ciência têm baixa reputação no Brasil. Nós mesmos, das Humanidades, que nem sempre conhecemos a dinâmica científica fora dos restritos círculos de nossas áreas de conhecimento, às vezes desautorizamos o pensamento sistemático. Um exemplo disso é nosso corriqueiro wishful thinking político. Outro ponto recorrente é considerarmos a produção do discurso como algo tão subjetivista, que já não é possível encontrar objetividade e com ela algo de verdade, ainda que seja ela, claro, provisória e passível de crítica. Se não fosse um exagero, diria que também nós contribuímos para que questões que não são da ordem da opinião se tornem vítima de arbitrariedade.

Não há que se ter opinião sobre a disseminação da Covid-19, mas considerar as análises de cientistas diversos, com destaque para os infectologistas, que dela têm se ocupado. Isso não significa que não se possa discordar de uma posição científica, o que inclui o questionamento dos critérios para caracterizar uma operação intelectual que se diz ciência. Mas não tomemos a prática científica pelo seu registro vulgar, mecanicista e muitas vezes mistificador, como no caso das revistas sobre poder da mente e congêneres.

Construir a democracia supõe ampliar a esfera pública e adensá-la. Para isso precisamos de razão, sem a qual não há ciência, tampouco educação para a autonomia. Já houve um ditador na cadeira presidencial que dizia preferir o cheiro de cavalos ao de povo. Atualmente temos um presidente que, eleito, nega a história, zomba dos dados científicos, inventa narrativas mirabolantes. Não, não estamos bem. O embate não é fácil e por isso um pouco mais luz seria muito bem-vindo.


Imagem de destaque: José Cruz/Agência Brasil

 

 

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