Quando o jogo adoece: Round 6 e a perda do sentido

Marcelo Silva de Souza Ribeiro1

Recentemente eu escrevi aqui um texto intitulado “O lúdico cura”, onde tentei mostrar a preponderância do diálogo, da relação e da entrega como fundamentais ao processo de saúde e também do desenvolvimento. Contudo, mesmo que a cultura esteja fundada na dimensão lúdica, tal como é sustentada na tese Huizinga, há desdobramentos e condições que podem contribuir justamente para uma direção oposta à saúde, sobretudo no sentido de uma obnubilação do dialógico.

Nesse sentido, alguns questionamentos iniciais se fazem interessantes: sendo o jogo um aspecto do lúdico, por que se desenvolve o vício de jogar e muitas vezes até uma certa fragilização do ser? O que nos diz séries como Jogos Vorazes e Round 6, que abordam a temática do jogo, revelando a deterioração ética e a perda de sentido? 

Antes mesmo de adentrar nessas questões aqui levantadas, eu gostaria de fazer referência ao trabalho de Wilhelm Reich (dissidente da psicanálise freudiana e criador de uma das principais bases da abordagem corporal), que apontava a energia sexual como fundante do ser, com potencial libertador e curativo. Contudo, Reich observava que essa energia estava alienada, de modo que os sistemas sociais a manipulavam para fins repressores e produtivistas. 

De modo semelhante, é possível pensar que a dimensão lúdica, ainda que fundante da cultura e sendo criativa, a depender de certas condições, termina por engendrar o “jogo que adoece”. Sim, porque o “jogo que adoece” é da ordem do humano e tem sua base na dimensão lúdica. Porém, não por uma vocação ou por sua tendência atualizante, mas por certas carências e empobrecimentos existenciais.

O próprio Huizinga, no livro Homo Ludens, questiona ao final da obra se a contemporaneidade não estaria caminhando para uma diminuição da dimensão lúdica à medida que se aprofundaria o sentido produtivista, utilitarista e “coisificador das relações”.

Numa instigante entrevista chamada “smartphone e o inferno dos iguais”, o filósofo sul-coreano, Byung Chul Han, aponta que o narcisismo e o exibicionismo, sobretudo proliferado pelas redes sociais, levam as pessoas a uma obsessão de si e, consequentemente, ao empobrecimento das relações.

Isso é o que se poderia chamar de uma vida mais conectada e repleta de informação ao mesmo tempo que carente de relações e empobrecida de conhecimentos. O fato do humano viver mais conectado não significa que viva o aconchego da boa intimidade ou o vigor da solidariedade. De igual modo, ainda que se reconheça a proliferação da cultura do entretenimento, isso não significa o mesmo que a alegria do brincar e a potência do jogar.

Uma sociedade que reduz o lúdico à cultura do entretenimento é uma sociedade de experiência empobrecida, já alertava Walter Benjamin. Assim, na atualidade da cultura do entretenimento, mais especificamente quando se propõe gamificar as escolas, as relações sociais, as empresas etc., não parece haver uma potencialização da dimensão lúdica naquilo que tem de força criativa e dialógica uma vez que essa gamificação está a serviço da produção e restrita à sua função utilitarista – alienada portanto.

Uma das características do brincar e do jogar é alternância do ir e vir, da zona intermediária, diria Donald Winnicott. É também a experiência criativa e transformadora, o que é fundamental para os processos de aprendizagem e desenvolvimento. No jogar e no brincar há experiências de confrontos, de limites e são nesse sentido constituidoras da experiência do processo identitário. 

Já na cultura que exacerba o entretenimento não há a alternância, não há o limite, não há a experiência formativa porque o que fica é a jogatina, como uma borra, como um substrato separado e manipulado, tal como uma droga fortemente viciante. O jogar, assim, não emancipa, não liberta. E ainda que gere um prazer momentâneo, o jogador se torna dependente e é o jogar que dá sentido à vida do jogador. A pessoa é reduzida ao seu ser jogador, tal como é narrado no livro “O homem dos dados”.

No que se refere a série Round 6, observa-se que a motivação pelo jogo é pelo dinheiro (em relação aos jogadores que arriscam suas vidas), porque estão todos desgraçadamente endividados e pelo sentido de existência (em relação aos milionários que financiam, fazem suas apostas e assistem os jogos). Sem debulhar as intrigantes questões dessa série, é possível apontar para uma perda de sentido existencial, seja dos endividados que perderam a esperança ou dos milionários, que se distanciaram do essencial da vida. Contudo, ainda que um vício, ainda que um jogo mortal, desalmado e degradante do ponto de vista não deixa de ser uma busca de sentido e uma tentativa de “salvação pelo jogo”.

Quando o jogo adoece é quando o jogo se reduz a jogatina, sendo o jogador aprisionado numa cultura do entretenimento, alienado ao contexto produtivista e utilitarista. Joga-se jogos para buscar algo e para encontrar sentidos, mas nesse jogo o que se joga é a própria queda (no sentido dado por Albert Camus) num looping que não se escapa.

 

1 – Dr. em Educação. Professor do Colegiado de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). E-mail: marcelo.ribeiro@univasf.edu.br

 

Para saber mais

BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: Obras escolhidas, Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114-119. 

Entrevista de Byung Chul Han – “Smartphone e o inferno dos iguais”. Acesse aqui

HUIZINGA, J. Homo Ludens. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1999.

RIBEIRO, Marcelo Silva de Souza. A Experiência Paradoxal do Processo Identitário [recurso eletrônico] / Marcelo Silva de Souza Ribeiro — Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021. Acesse aqui

RHINEHART, Luke. O Homem dos Dados. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1994.

WINNICOTT, Donald Woods. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1975.


Imagem de destaque: Pxhere

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