O lúdico cura

Marcelo Silva de Souza Ribeiro¹

O lúdico é uma daquelas dimensões que não se consegue pegar, mas que é possível sentir e viver intensamente. A dimensão lúdica faz parte daquilo que o psicólogo humanista, Afonso Henrique Lisboa da Fonseca, se referia ao dizer que “do invisível brotam efeitos visíveis”.

É nessa direção que Huizinga, em sua obra “Homo Ludens”, vai considerar o lúdico como criador da cultura, pois estaria presente em necessidades humanas como o ritmo, a harmonia, a mudança, a alternância, o contraste etc.

Sustentamos aqui, pois, o entendimento de que a dimensão lúdica, da sua invisibilidade traz desdobramentos visíveis, como é o caso da cura. Importante, contudo, precisar o sentido de “cura” e, ainda que em síntese, abordar essa relação do lúdico e da cura.

A palavra cura aqui tem o sentido de cuidado e de atenção, mas também de algo que passou por um processo, como um queijo que está curado. Se o lúdico cura é porque há algo de cuidado, de atenção e de processo que leva à transformação. 

Lembrando o pediatra e psicanalista inglês, Donald Winnicott, sobretudo em sua obra “O brincar e a Realidade”, há uma zona intermediária entre o que está dentro e o que está fora do indivíduo. É nessa zona que as brincadeiras e os jogos vão vicejar, justamente por não se situarem nem dentro e nem fora, mas na relação, no “entre” e no diálogo, pode-se dizer.

A dimensão lúdica é sempre da ordem da relação, do diálogo, portanto. Mesmo quando se brinca ou se joga sozinho há diálogos estabelecidos. Sendo dialógica, a dimensão lúdica possibilita elaborações de novas compreensões. Ao brincar e ao jogar se experimenta relações que se desdobram em um olhar diferente sobre certos aspectos da vida, em autoconhecimentos, em ressignificação de situações entre outras formas de compreensões.

Brota da dimensão lúdica o prazer na vivência da finalidade sem fim dos jogos e brincadeiras (são tipicamente não úteis), na seriedade não séria e no movimento do próprio jogar e brincar.

A dimensão lúdica, em suas expressões mais conhecidas como as brincadeiras e os jogos, possibilita àqueles que os vivenciam uma entrega, uma presença e uma certa suspensão no ato de brincar ou jogar. Essa vivência revigora e certamente não se é mais o mesmo após a entrega no brincar ou no jogar.

O brincar e o jogar, que são experiências universais e próprias da saúde, contribui para o desenvolvimento e para inúmeras aprendizagens, ajuda a formação de relacionamentos grupais e é em si potente comunicação, uma vez que por via do brincar e do jogar há refinadas expressões.

Ao brincar e ao jogar há apropriações dos elementos culturais e históricos, assim como novas interpretações. Isso envolve novas tomadas de consciência de si e do outro, portanto tem a ver com o processo identitário.

A despeito desses reconhecimentos acerca do lúdico, o modo de vida contemporâneo parece estar hipotrofiando a dimensão lúdica das experiências humanas. O utilitarismo do viver, o “time is Money”, o competitivismo, o produtivismo e o individualismo tem sufocado a potência criativa, o sentido de realização autêntica e lançado o humano numa atmosfera de não saúde.

 

Para saber mais
WINNICOTT, Donald Woods. O brincar e a realidade. Editora Imago, Rio de Janeiro, 1975.

Huizinga, J. Homo Ludens (1999). Trad. João Paulo Monteiro. 4 ed. São Paulo: Ed. Perspectiva.

 

1 – Dr. em Educação. Professor do Colegiado de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). E-mail: marcelo.ribeiro@univasf.edu.br


Imagem de destaque: Hippopx

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