Professorandes, professoremos – assim contou Ayó (Parte II)

Ivane Laurete Perotti

Conhecedor de cada canto daquelas tumbas flutuantes, Ayó se fez necessário. Enfrentou o cheiro da morte que habitava as embarcações. Muitas. Iam e vinham. Nauseabundas. Galeras. Bergantins. Barcos. Escunas. Corvetas. Todos abarrotados de homens, mulheres, crianças. Contabilização de ganhos, “perdas”. O mar coalhado de corpos. Descarte. Violência e escárnio costurando bainhas de tortura. Em cada um daqueles porões do inferno, o ferreiro jurou guerra. Com o espírito marcado pela revolta, e com um plano audacioso em mente, passou a levar as ferramentas da Casa Grande para o porto. Às vezes, nas costas. Outras, arrastadas em sacos, os mesmos que serviam de roupa aos recém-escravizados. No rosto, a máscara da placidez. O silêncio talhado em pedra. Moldado pelas dores da resistência.

Ayó alcançou permissão para montar carroça. Pequena. Puxada por ele mesmo. Caixa de madeira sobre rodas. Temperadas a suor e sangue. Rangendo objetivos. Sulcando a terra que fechara os olhos para os filhos arrancados da Mãe-África. Comércio de gentes.

— A gente tá ficando angustiado, Zaca! Essa parte da carroça não tem muita serventia.

— Tem!

E tinha. A carroça, à moda Cavalo de Troia…

— Exagerou, Zacaria. Como ele ia conhecê as história lá dos Turco, meu?

— Da Grécia, Tonho! Dãa! E… eu contando uma saga, tendeu? Sa-ga! Aquilo do Odisseu, tá ligado?

— Tá enrolando demais, saca?

Zaca, cara! Deixa eu contá os finalmente!

Então, Ayó preparou a carroça de modo a esconder de um a dois escravos por vez. Às vezes, arriscava esconder mais. Dependia das circunstâncias. Da necessidade.

— Ô, profe! Tá muito enrolado. Faz ele contá direito!

— Direito? Eu contano o que é!

— Foi…que foi, Zaca. Já foi! Vai lá. Continua! Tá perdeno a graça.

— Tá…é que, o meu tantos avô tinha construído uma parede dupla, sabe!, em muitos dos navio. Tendeu? E ele usava a carroça pra levá as pessoa. Escondia elas lá. Quietinhas. Ninguém sabia das parede. E ele ensinava tudo pras pessoa. Como ficá quietinha. Como contá os dia. Como fazê na hora de descê do navio. Tendeu? E elas queria voltá. Voltá pra casa. Elas queria a vida de volta. A vida delas!

— Mas como? Como elas ia sabê quando o navio chegava na África? Furada, meu!

Meuas pessoa queria sabê de voltá pra casa. Onde eles sequestrava os negro? Na África, né?? Então! Se iam vazio, voltavam carregado de povo. Tende? Daí, o Ayó explicava pros fugitivo como saí, como saí do navio. Di tê paciência. Di pegá cumida.

— Eu acho que eles morria tudo! Não tem como si escondê num navio.

— Ah! Tem sim… Ayó conhecia tudo, si esqueceu

— Duvido! Você inventano!

— Então… estudantes! Estou muito interessada em ouvir a sua história, Zacaria. Vamos continuar a leitura de seu texto?

Simbora, profe!

Camuflados em pequenos espaços, longe dos olhos dos algozes, Ayó organizou esconderijos. Apertados. Quase sufocantes. Mas eram suficientes para esconder alguém durante a travessia. Precisavam contar com a sorte e com os erros de cálculo. Tanto na fazenda, quanto nas embarcações. Mas os escravos contribuíam com argumentos que funcionaram por um tempo: uma doença ruim, muito ruim, que os obrigava a queimar o corpo antes mesmo de o “Sinhô” assuntar. Doença braba. Espalhava sem dó. Não tinha embargo de pegar qualquer um. Ou então, o irmão escravo fugira durante a queima no canavial. Caíra no rio. Levado pela correnteza. Corpo comido por peixes. Piranhas. Vorazes. Isso tudo se deu muito devagar. Devagarzinho. Às vezes, o fugitivo ficava muitos dias escondido no mato, nas ribanceiras, de modo a não ligarem as fugas com as chegadas dos navios. E foi assim por um tempo. Não o suficiente. Por que um feitor desconfiado, resolveu conferir a carroça de Ayó.

— Foi aí que ele morreu?

— Foi! Ele e as criança que tavam escondida.

— Mas isso não é guerra coisa nenhuma! Foi muita burrice dele.

— Foi não! 

— Foi sim! Arriscô todo mundo!

— E eles já não tavum em risco?

— Não cola, Zaca! E como sabe se alguém si salvô!? Não tem como sabê!

— Tem sim…uns poco que conseguiram descê na Terra-Mãe foram contando pros’ôtro! Sacô?

— Ah! Nem! Acho muito difícil!

— Pois, vô prová!

Os risos da sala só não foram mais altos do que a altura dos olhos da professora.

— Zacaria, não leve a ferro e fogo a sua contação…

— Pois, levo sim, profa! Ferro, fogo e papel. 

— Eu quero que fique muito tranquilo sobre…

— Ó! Eu disse que não dava pra prová o real, né? Mas a realidade eu posso…hum!

Sobre a carteira de Zacaria, o instante tornou-se eterno. Nele descansava a cópia de uma reportagem em jornal angolano. De Assomada. Escrito na língua oficial, possibilitou a leitura a cada um da sala. Tratava-se de uma história contada por gerações. Um escravo fugido do Brasil, ainda menino, descera em Cabo Verde, durante uma longa noite de sequestros e mortes. Tendo aguardado o momento propício para descer da escuna, apresentava-se desnutrido e assustado. Passara trinta e cinco dias escondido em um vão camuflado na casa de máquinas. Acolhido por aqueles que também fugiam dos criminosos, sobreviveu e construiu família. Jamais deixara de mencionar o ferreiro que, na guerra pela vida e pela liberdade, morrera no tronco: Ayó. 

Olhos de tristeza reviveram a história. Haveriam de pensar no que fazer com ela.

Professorandes, professoremos! – recomeçou a professora.


Imagem de destaque: “Nègres a fond de cale”, de Johann Moritz Rugendas, que integra a obra “Voyage pittoresque dans le Brésil”, de 1835. Obra rara do acervo bibliográfico do Arquivo Nacional.

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