Processos educativos em Os Trapalhões

Daniel Machado da Conceição

No ano de 1988, a escola de samba Unidos do Cabuçu do Rio de Janeiro/RJ, criou um samba enredo em homenagem aos Trapalhões. A letra dizia que “Didi, Dedê, Mussum e Zacarias, seu mundo é encanto e magia.”

Em minha infância na década de 1980 e adolescência nos anos 1990 foram embaladas por essa melodia humorística. Os domingos a noite ou em posteriores inserções na programação semanal da principal rede de televisão do país, as brincadeiras e piadas que envolviam o quarteto eram produzidas e reproduzidas à exaustão. Os principais bordões dos personagens deixavam as telas da televisão e invadiam as conversas nos diversos espaços públicos e privados.

Cada personagem era estereotipado, Dedê representava o homem branco que aproveitava o privilégio da branquitude, um galã, mas por ser o oposto da virilidade masculina sua sexualidade ficava sob suspeita, motivo de muitas piadas da trupe. Didi era paradoxal, um homem nordestino que representava milhões de brasileiros humildes que sacrificavam suas vidas em busca da tão sonhada mobilidade social, porém, também era exemplo da malandragem cultuada pela capacidade de improvisar, evitar o trabalho e no final sempre se dar bem.

Zacarias era um homem do interior, emotivo, medroso, desajeitado, inseguro e de fala estridente, devido a sua aparência muitas piadas lhe eram direcionadas. Mussum, o homem negro estereotipado com características de força física, beberão, mulherengo, apaixonado por futebol e samba, além de ser avesso ao trabalho.

No rol dos humoristas negros que também fizeram sucesso no período não posso deixar de citar o ator Grande Otelo e Jorge Lafon. Seus personagens carregavam outro leque de estereótipos pejorativos associados ao corpo negro.

Voltando ao suposto mundo de encantos e magias dos Trapalhões, um grande grupo de atores fizeram parte do projeto. O Sargento Pincel, principal parceiro, personagem do ator Roberto Guilherme, era o alvo das brincadeiras e pegadinhas do quarteto.

Uma questão que surge sobre Os Trapalhões, e também em todos os outros programas humorísticos da época, é a discussão sobre o tipo de humor permissivo que, atualmente, não é mais aceito como engraçado. Os queixosos chamam de mimimi por entenderem que a história tem mais permanências do que rupturas, para eles as piadas nunca foram preconceituosas.

Nas décadas finais do século XX os programas humorísticos como os Trapalhões e seus correlatos, fizeram humor preconceituoso e racista. Nosso estágio civilizatório aceitava o uso das ofensas humorísticas ou o racismo recreativo[1] de forma naturalizada.

O conhecimento é uma virtude quando aprimoramos nossa sensibilidade e nos tornamos mais tolerantes ou sensíveis aos aspectos mais profundos das relações humanas. O efeito na sociedade são novos debates, cursos de formação, legislações e a transformação das práticas retrógradas e discriminatórias.

As mudanças sociais e culturais não são fáceis, resistências sempre são identificadas, pois alguns indivíduos preferem manter o que reconhecem como ordem natural. Um exemplo é do desembargador Paulo Rangel no Rio de Janeiro que reverteu uma sentença de injúria racial, alegando que o mundo está chato e justificou que as brincadeiras humorísticas como a dos Trapalhões divertiam gerações e gerações de famílias e nunca foram um problema.

O desembargador representa uma geração órfã dos Trapalhões, ainda que no século passado esse humor fosse permitido e aceito, a discussão não está no fato de ser ou não problematizado no período, independentemente das brincadeiras, pegadinhas e piadas, elas eram e são discriminatórias e racistas.

Os órfãos dos Trapalhões continuam exaltando o que é mais agradável a eles e não aos outros. Os órfãos dos Trapalhões não entendem o complexo de Édipo, precisam superar os seus pais para progredirem, porém muitos apenas querem permanecer em berço esplêndido.

O alegado mimimi é a negação do desejo de superar o pai, é a exaltação da zona de conforto cultural, mesmo quando ela significa intolerância, individualismo, discriminação e racismo. Com o bordão do personagem Mussum precisamos exclamar: “Cacildis!” Como esse pessoal não aprende com o passar dos anos? Quem sabe um bom chute no “forévis” possa ajudar a dar o primeiro passo.

 

Para saber mais
[1] MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

[2] Samba-Enredo 1988 – O Mundo Mágico Dos Trapalhões. Unidos do Cabuçu. Composição: Adalto Magalha, Adilson Gavião e Sergio Magnata. Acesse aqui.

[3] Desembargador cita Trapalhões ao absolver autor de ‘brincadeira’ racista e diz que ‘mundo está chato’. Acesse aqui.


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