Paulo Freire e educação superior em tempos de pandemia: olhares que me afetam

Fernanda Mendes Resende1

São 8h50. Entro na Plataforma Teams, abro uma reunião, ligo câmera e áudio e aguardo. As alunas começam a aparecer. Na verdade, os ícones aparecem. São os avatares, as imagens escolhidas pelas alunas para serem suas referências no Teams. Podem ser fotos (o que ajuda um pouco, porque posso visualizar a aluna), ou podem ser imagens (essas variam: a banda preferida, um personagem de anime ou série, uma paisagem). Ou podem ser apenas letras, mesmo: as iniciais do prenome e do último sobrenome da aluna. Essas letras são terríveis, é o que mais causa a angústia provocada pela inevitável pergunta: elas estão mesmo aqui?

Aos poucos, algumas ligam as câmeras. Que alívio ver gente de verdade! Elas estão em casa: visualizo quartos, salas, cozinhas, varandas… Às vezes vejo mães, avós e irmãs. Assim como eu, elas também precisaram reorganizar o espaço de trabalho em casa para estar online. Pedi à minha filha de 12 anos que fizesse desenhos na parede atrás de mim, para que esse “fundo de aula” tivesse algum sentido. Tenho Paulo Freire, a bandeira da luta LGBTQIA+, um mapa mundi, referências da luta feminista. Alusões que fazem muito sentido para mim e, a meu ver, para a Psicologia.

Entre “abrir a reunião” no Teams e o primeiro “bom dia” para a primeira aluna a abrir a câmera, não são mais que um ou dois minutos. Parecem uma eternidade. Completamos 15 meses de ensino remoto, imposto pela quarentena da pandemia de COVID-19. Não sabemos quando poderemos voltar ao presencial. Nesses 15 meses, nós nos adaptamos. Alunas, professoras e funcionárias da Universidade se reorganizam todos os dias para que tudo funcione. De tudo o que faço, entre aulas e trabalhos administrativos na universidade, não me acostumo com os ícones, os avatares. Não consigo normalizar os dois minutos em que espero ver rostos e sorrisos, ouvir “bom dia, profe!” e um comentário qualquer. Os “bons-dias” vêm, sim, claro, aos montes no “chat”. Às vezes uma brincadeira, um comentário. Mas não se poderá comparar, nunca, ao encontro verdadeiro provocado pelo ensino presencial na sala de aula, com bons-dias de verdade, com sorrisos, e às vezes até com mau humor; seja porque ainda é muito cedo em Poços de Caldas, montanhosa cidade no sul de Minas onde a temperatura pode chegar a sete graus em junho, seja porque não curtiu uma avaliação minha em um trabalho não muito bom. Mas até o mau humor e a braveza são mais sinceros na vida fora das telas!

Ao longo desses 15 meses, organizamos nossos encontros remotos. Converso muito com as alunas sobre a importância das câmeras ligadas. Estamos em um curso de Ciências Humanas, os olhares para e da outra pessoa são fundamentais na constituição das nossas identidades. Venho estudando Paulo Freire e tentando trazer suas propostas para minha prática docente; esse autor nos fala, muitas vezes, sobre a boniteza dos encontros. Sobre como nos tornamos melhores a partir do estar com o outro, em rodas de conversas, em diálogos. Sem dúvida, que bom que temos a possibilidade de continuarmos os estudos na universidade a partir da existência da internet, em meio a uma pandemia tão grave e submetidas a um governo incompetente. Mas… e nossos encontros? Como fazer com que as jovens compreendam a importância do olhar? Como manter as rodas de conversas nas aulas remotas? Deixo de ser freireana se exijo a câmera ligada? 

E exijo. Digo, amorosa e enfaticamente, que as câmeras devem estar ligadas, no mínimo, durante as apresentações de textos e trabalhos. Quer falar comigo na aula? Tem que ligar a câmera! Enquanto ao menos uma aluna não liga a câmera, não começo a aula. Em nenhum momento desses 15 meses, dei aulas só para os avatares. Eu me recuso. Estou aqui inteira e, como professora comprometida e que quer tão bem às educandas, mereço que pelo menos uma parte das minhas alunas esteja inteira também. A tela produz várias distrações, especialmente as redes sociais. Se a aluna não está com a câmera ligada, a chance de se distrair na internet é maior. Como Paulo Freire (2002) dizia, ensinar exige muito de nós, professoras: saber escutar, disponibilidade para o diálogo, comprometimento, generosidade. E exige também que a outra pessoa que nos ouve esteja disposta ao diálogo e à partilha.

Ouço muito que não posso obrigar ninguém a ligar a câmera, a aparecer. Respeito essa opinião, porque respeito os desejos individuais. Mas não estamos no modelo Educação à Distância (EaD). Existe uma grande diferença entre a EaD e o ensino remoto: a EaD normalmente trabalha com aulas e vídeos gravados, sem contato direto entre professora e alunas, e normalmente as alunas assistem às aulas em horários escolhidos por elas; no ensino remoto, as aulas acontecem no mesmo horário do presencial, em encontros síncronos, com fundamental participação de todas. Estamos em modo remoto unicamente por causa da pandemia. Também entendo que muitas estudantes têm vergonha de suas casas, ou compartilham seus quartos com amigas e parentes. Para isso, as plataformas de aulas têm muitos fundos falsos, que escondem os ambientes. Estaríamos todas juntas, olhando-nos, analisando-nos, se estivéssemos presencialmente.

Não temos que dar conta disso? Especialmente nas Ciências Humanas? O afeto perpassa o encontro entre professora e alunas, perpassa todos os encontros… Como vamos nos afetar se nem permitimos que nos vejam?

Paulo Freire afirma que “qualquer que seja a prática de que participemos, exige de nós que a exerçamos com responsabilidade. Ser responsável no desenvolvimento de uma prática qualquer implica, de um lado, o cumprimento de deveres, de outro, o exercício de direitos.” (FREIRE, 2017, p.105). E completa: temos o direito de ser respeitados como gente. E o que faz sentido na prática docente? O que me faz sentir respeitada como “gente” na prática docente?  O que mais quero, como professora, é que o que eu tenha para ensinar, para trocar, faça sentido na vida das minhas alunas. Que nossos debates as despertem para o que Paulo Freire chamou de conscientização e empoderamento: movimentos pessoais, realizados por cada uma de nós a partir do desenvolvimento da nossa autonomia. Para Freire, conscientização e empoderamento não me são dados, são efeitos de meu movimento para a autonomia. 

Esse autor afirma que “a qualidade ética da prática educativa libertadora vem das entranhas do fenômeno humano, da natureza humana como vocação para o ser mais” (FREIRE, 2017, p.108). Só consigo conceber o fenômeno humano vendo e ouvindo as pessoas que compartilham da prática educativa comigo. Nesse sentido, e por causa disso, continuarei repetindo incansável e afetuosamente: “Vamos ligar as câmeras, pessoal?”!

 

1 – Psicóloga pela PUC Minas, Mestre em Educação pela FaE/UFMG, Doutora em Educação pela FE-USP, Professora do Curso de Psicologia da PUC Minas campus Poços de Caldas.

 

Para saber mais: 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

FREIRE, Paulo. Política e educação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.


Imagem de destaque: cedida pela autora. 

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