Paulo Freire clássico

Wojciech Andrzej Kulesza

Coincidentemente, o centenário do nascimento de Paulo Freire, acontece um ano após os 350 anos da morte de João Amos Comenius, rememorados em 2020. Todavia, esta aproximação entre os grandes educadores não é fortuita, pois tem se encontrado muitas semelhanças, tanto na vida, como na obra de ambos. De fato, a medalha Comenius, criada pela UNESCO para gratificar inovadores e excepcionais exemplos de educadores, foi solenemente entregue a Comenius em 1994, já por ocasião da segunda premiação.

Na vida, o exílio forçado de ambos, nas obras, a educação para a paz, são temas óbvios quando se confronta Freire com Comenius. Também, o “patrono da educação brasileira” e o “mestre das nações”, embora sejam aclamados em suas regiões de origem, não limitaram sua ação educativa aos seus países, pois ambos propugnavam uma educação universal, para todos. Freire pensava principalmente a América Latina e o chamado Terceiro Mundo, enquanto Comenius visava muito mais os países periféricos da Europa.

Foi por essa razão que Comenius dirigiu-se em 1650 para Sáros Patak, cidade situada na região hoje pertencente à Hungria, atendendo ao convite do príncipe local para reformar o ensino secundário. Ciente da limitação cultural dos habitantes da região, ele orienta seus esforços na valorização da cultura intelectual materializada nos livros. Já no discurso de abertura das atividades escolares daquele ano ele discorre sobre a maneira correta de lidar com os livros, considerados por ele as principais ferramentas de formação cultural.

Nesse discurso, tal como no livro de ensaios de Freire, A importância do ato de ler, Comenius mostra o valor da leitura para que um povo se compreenda a si mesmo, condição indispensável para a construção de uma cultura nacional livre e independente. A primeira coisa que ele ressalta é que as pessoas que aspiram uma formação intelectual devem considerar o valor dos livros muito superior ao do ouro e das pedras preciosas. Na sociedade mercantilista do século XVII isso deve ter soado como uma blasfêmia.

Argumenta Comenius: “Certamente um homem faminto deseja mais pão do que ouro, um cego um unguento curativo em seus olhos mais do que prata, um doente medicamentos mais do que tesouros. Terras seriam inúteis se não houvesse sementes, inúteis seriam as abelhas se não houvesse jardins e prados onde elas poderiam coletar mel etc.”. Ao mesmo tempo que ele equipara os livros a coisas absolutamente necessárias, Comenius apresenta metaforicamente objetos com função semelhante ao livro, como as sementes e as flores.

Em segundo lugar, diz Comenius, como o tesouro não são propriamente os livros, mas a sabedoria depositada neles, para que os livros tenham algum valor para o povo eles precisam estar acessíveis e não guardados nas bibliotecas como se estivessem em cofres. Ele aconselha também ler de preferência livros com conteúdos objetivos, “livros que se ocupem das coisas necessárias para a vida”. Melhor ainda, como diria Freire, se esses livros contribuírem de alguma forma para melhorar a condição humana de seus leitores.

Em seguida, Comenius adverte que não são os livros que nos tornam sábios, mas sim o seu estudo. Por conseguinte, ao ler os livros é preciso anotar as passagens mais importantes a serem assimiladas. “Não selecionar nada significa não aproveitar nada do livro”, firma Comenius insistindo na necessidade de tomar notas durante a leitura, valendo-se dos exemplos de inúmeros eruditos. Para viabilizar isso, Comenius recomenda um diário, “no qual você registra tudo que em um dia você leu, ouviu ou viu e gostou”.

Dessa maneira, o que o leitor vai acumulando através da atividade do seu pensamento ele terá sempre à sua disposição. Como último conselho, Comenius discorre sobre a aplicação desses conhecimentos: “você tem que saber bem como usar corretamente os tesouros de sabedoria que coletou”. Tal como o anterior, este conselho refere-se mais propriamente ao modo de se estudar através dos livros, podendo ser cotejado proveitosamente com o que Freire escreveu sobre o tema, especialmente suas Considerações em torno do ato de estudar.

A permanência de obras que exprimem as experiências significativas de homens, como as de Comenius e Freire, mais do que destacar seus autores como indivíduos excepcionais, atestam sua humanidade, compartilhada através dos tempos por seus leitores. As comemorações destinam-se a reviver essas experiências, compará-las com as nossas e com outras semelhantes, irmanando-nos em torno dos desafios de nosso tempo. Nada como a leitura dos clássicos para nos situarmos adequadamente nessa discussão.

 

Para saber mais
ALEHRT, Alvori. Educação, Ética e Cidadania em Johann Amos Comenius: aproximações com Paulo Freire. Estudos Teológicos, v. 46, n. 2, p. 84-94, 2006.

COMENIO, Juan Amos. Sobre el trato correcto con los libros, las herramientas principales de la formación. Revista Educación y Pedagogía. Medellín: Facultad de Educación. Vol. XIII, No. 29-30, (enero-septiembre), 2001. pp.197-205.

KULESZA, Wojciech Andrzej. Transformar o homem e a humanidade: a concordância entre as propostas educativas de Jan Amos Comenius e Paulo Freire. In: INCONTRI, Dora (Org.). Educação, Espiritualidade e Transformação Social. São Paulo: Editora Comenius, 2014.


Imagem de destaque: Portrait of an Old Man, Rembrandt

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