Os bilreiros de março – Parte II

Ivane Perotti

Arre ééééégua! A conversa chegou à escola pela boca das crianças. São elas a salvar o dia, e, às vezes, a crescer lambança. O fato virou promessa. A professora assuntou livros. Juramentada deu-se ela. Que se largasse a bobice. Rosilho não vive na floresta. Essa história de boi no mato, era triste de dar dó. Akòko para a cabeça. Cuidado para não tombar no céu. Maracujá para os nervos. Melhor ouvir a ciência. Essa lograva tento. Convocou para reunião de ouvido e boca. Que não fugissem à prega. Nem homem, mulher, mirim, ou adulto viandeiro. De resto, boca de abiu. Colados. Calados. Sem falação. Marmotage tinha hora. 

Leseira baré lavrou o mocambo. Despombalecido em riba do medo. Medo e encabulamento. Encabulamento por medo. Medo de voltar à floresta. Melhor ouvir a professora. Cursada na capital, entendida das ciências. Bem formada, a moça. Mas, sonhos não têm doma. Já cansados dos pesadelos, os mocambeiros fizeram ronda. Era sonho com boi de dentro, boi tirado a bagual; búfalo de chifre torto, cascos de fogo, cuspe de barro… leite, barro… lava… Tudo junto na mesma figura. Já duvidavam. Nominavam a loucura.

A professora pregou cartaz. Instalou cavalete. Autofalante de mão. Por energia o sol. A outra não chegava ali. O mocambo era pequeno. Casinhas pau a pique. Montado em torno do círculo, praça, escola, descanso, namoro e até confusão. A tal gripe não chegara, ainda. O vírus precisava de lombo humano para entrar na mata. Homens no vai e vêm eram poucos. Moviam-se na conta da precisão. Vendiam artesanato por mãos de ganho, mais ervas secas e otin de milho. Tropeavam por trilhas estreitas. Depois, embarcavam em dois ou três pô-pô-pô para chegar ao comércio. São Gabriel da Cachoeira ficava a muntos miles de adistância. Na cidade, instalavam-se pelas ruas. Das. Semanas. Máscaras improvisadas com tecido gasto e folhas de bananeira não cumpririam a demanda. E a professora duvidava que permanecessem no rosto. Os interioranos tinham dificuldades para assimilar os riscos. Viviam isolados. Envoltos pelas tradições e crenças que costuravam heranças: filhos da terra, filhos da África, filhos de outras paragens. Laços fortes dos autóctones, primitivos, donos da terra e suas línguas, permaneciam para além das violentas conversões. No passado e no presente. 

A chegada do povo africano, lá pelos finais do século XVII, tecera o sincretismo de reverência às energias da natureza. O fundão da floresta que circundava São Gabriel da Cachoeira guardava um laboratório de aprendizagens. Espaço em risco pela invasão da inconsciência. Devastação. Mocambos e aldeias mais próximos da exploração já contavam com morte pela gripe. Infectados. Quanto mais isoladas as pequenas comunidades, mais difícil pensar a materialidade do vírus que devastava o país. Pensá-la correspondia à fé de que a madeira do bilreiro, junto ao corpo, afastaria a contaminação. 

Para os de fora, a cultura pareceria atrasada. Mas o primitivo tinha gosto de folha fresca. Tenra. Pura. Composto. Ainda assim, original. E os conhecimentos, passados de boca em boca, galgavam degraus de vida. Sobrevivência. Adequação. Na pouca urgência, o tempo e a distância contavam. Águas baixas, uma semana de movimento. Nas cheias, impossível alcançar transporte. E a morte fazia sentinela. As xaropadas davam conta do costumeiro. Misturas ancestrais, emplastros irrepetíveis. Para muito dava-se jeito. Mas não para aquilo que se avizinhava. Uma coisa era buscar as ervas medicinais. Outra, era depender das ferramentas da medicina às quais nem em sonho tinham acesso. Orgulhavam-se da vida serena. Enricada pela mãe natureza. Uns roçadinhos de ervas, milho e feijão. Vaca leiteira. Nada mais de precisado. Caça, pouca. Uma ninhada de garnisé. O que era de um, era de todos. Os rosilhos ficavam longe, em fazendas enricadas. Vindos da Ilha de Marajó. Não se criavam ali: mata fechada. Coração da Amazônia.

Assim tinham vivido. Poucos sustos. Lendas e crenças bordando as rezas com igual presença. Quanto à gripe, receberam comunicado. Por ordem de cima e dos lados. A Amazônia era muitas. A professora já explicara a situação. No intento e excessos, parecia a ela falar de morada na lua. E sem o São Jorge. Nem o dragão abatido. Jaci, para alguns, olhava de cima. Ponto. A metragem entre os espaços de significado criava distanciamento sobre a ideia do vírus. Distância de imagens. Era a baixa das águas que a preocupava. Próxima. A poucos meses. Tempo de vender os artesanatos da estação. Partiriam pelas trilhas estreitas, cobertas pela terra mole. Barro fértil. Escuro. Resultado do beijo voraz das águas sobre a mata passiva. Do grande abraço às árvores. Só a copa espiava a vastidão. Vastidão de água barrenta. Rica. Vastidão das cheias. A mãe Terra regurgitava bálsamos. Águas da Bacia do Rio Negro. Em Tukano, Nheengatu, ou Iorubá, cantavam os mais antigos. Osun, Iara, Mãe-d’água, dançavam sobre o lençol de água doce. Estômago de mel. Comida no mangue para os pequenos caranguejos-do-igarapé. Alimentados, alimentavam. Manguezeiros e manguezal.

(CONTINUA)


Imagem de destaque: Mauricio Mercadante / Flickr

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *