O sabor da escrita

Evelyn Orlando

Já faz algum tempo, venho me perguntando sobre o sentido da escrita em minha vida. Desde que aprendi a escrever, sempre fiz da escrita uma forma de comunicação, mesmo quando esses escritos não passavam de garatujas. Escrevia para exprimir algo para alguém ou para mim mesma.

Em meu ofício como pesquisadora, na maior parte do tempo, escrevo e publico para comunicar o conhecimento científico que, junto a colegas e estudantes, venho produzindo academicamente. Confesso que não faço ideia de quantas pessoas já leram esses textos ou fizeram algum uso deles. As métricas nos dão algumas pistas, embora estejam sempre muito aquém dos usos ou desusos de uma leitura.

Mas a escrita, com o tempo, começou a ficar burocrática e menos prazerosa, perdendo um pouco o sentido e o brilho que sempre teve para mim. Remexendo nos guardados da memória, fui buscar onde a chave tinha virado, e me deparei com tantas histórias relacionadas ao escrito que, em época de fim de ano, emergiram como um balanço e como um questionamento: por onde anda aquele sabor da escrita?

Em criança, era pela escrita que chegava às pessoas que amava, com cartinhas, ilustradas ou não, já que desenhar nunca foi meu forte. Na adolescência, ela se tornou meu refúgio, em um caderno de poesias – que, já faz algum tempo, se perdeu e nunca mais foi retomado –, mas também em cartas, por onde me conectava a pessoas queridas que moravam distante e a pessoas próximas quando queria lhes dizer algo para não se perder. A escrita era meu refúgio, minha forma de conexão e um registro importante sobre os diferentes temas e problemas que perpassavam minha trajetória. Ela tinha um sentido quase existencial em minha vida. Era por meio dela que também recebia broncas e puxões de orelhas do meu pai, vez ou outra, em alguns dos muitos cartões de aniversário ou de Natal enviados nessas datas.

Aliás, os cartões merecem destaque neste texto, porque eram uma das formas de comunicação em casa. Aquilo que se evitava falar durante o ano, por vezes aparecia no cartão. Um registro de observação do que foi e do que se esperava que fosse dali pra frente e um espaço para elogios, estímulos e muitos afetos partilhados. Os cartões eram tão especiais que são a única coisa que coleciono até hoje. Também tentei colecionar papéis de carta, mas não consegui. Usava todos. Eram bonitos demais para ficarem guardados em branco.

Comprados, trocados, feitos à mão, simples ou cheios de enfeites, com beijos e perfumados (ou não), dar e receber cartões era o ponto alto das datas comemorativas para mim. Era mesmo uma festa pensar nisso! Empolgação na escolha do suporte e do que ia escrever. Depois de muitos rascunhos, passar a limpo (às vezes mais de uma vez), pra não errar, pra ficar bonito, pra impressionar. Seria uma escrita para alguém, tinha que causar boa impressão. Os cartões sempre foram para mim muito mais importantes que os presentes. Que pena que, sei lá por que razão, esse hábito se perdeu e parece que não foi só na minha casa. Temos tempo de ir a inúmeras lojas, escolher presentes muitas vezes tão sem sentido, só para “não deixar a data passar em branco”, mas não temos mais tempo de comprar cartões (fáceis de encontrar em qualquer papelaria) e escrever para alguém algo mais do que as mensagens postadas rapidamente nas redes sociais, quase padronizadas, codificadas por símbolos que resumem o que quer que seja que a pessoa queira dizer. Talvez algumas palavras dissessem mais do que muitos presentes. Mas elas não são compradas e parece que já não valorizamos mais o que não foi comprado. Faltam-me palavras para descrever o que penso sobre isso.

Mas, voltando à escrita, naquele processo que habitualmente fazemos todo fim de ano, tentando dar alguma ordem ao que passou e preparar a casa para o ano que vai começar, em meio a caixas de guardados que arrumamos desarrumando, achei minha pasta de cartões e li alguns trechos da minha e de tantas outras histórias, traçadas em linhas quase sempre tortas, mas tão conectadas. Histórias de outros tempos… Seriam também escritas de outros tempos, com outra função?

Escrever para quê? Uma pergunta que têm muitas respostas, decerto, mas uma delas passa, sem dúvida, por aproximar, conectar, criar elos, dizer o que não se pode expressar verbalmente (não importa a razão), às vezes nem pra si mesma. Escrever é registrar, e esse processo força a pensar, a organizar as ideias, elaborá-las e comunicá-las, ainda que o interlocutor seja você mesmo. É você sendo/existindo de forma refletida. Na escrita de si ou na escrita para o outro, há aí um processo de elaboração do vivido, do pensado, do sonhado que pode, de muitos modos, libertar. E nem sempre precisa doer.

Neste fim de ano, momento em que quase sempre enveredamos por velhas e novas escritas, talvez possamos escrever para lembrar, para registrar, para jamais negarmos os dissabores, mas também os sabores, deste ano vivido como sujeitos desta história.


Imagem de destaque: Kelly Sikkema / Unsplash

 

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