O que Lula não disse no seu pronunciamento de 10/03: uma análise que nem a direita, nem setores da esquerda farão.

Tiago Tristão Artero

Para além da vitória da democracia unilateral na qual vivemos, da análise do ex-presidente Lula sobre as questões da saúde, segurança pública, segurança alimentar, liberdade religiosa, combate ao negacionismo, ao racismo e estímulo ao desenvolvimento tecnológico, há muitas pautas ‘mal ditas’ ou não ditas, propositadamente, ou não.

Natureza: O silêncio ensurdecedor de Lula sobre a Natureza, sobre os ataques ao meio ambiente e sobre os prejuízos destes ataques ao planeta, como um todo, e à soberania alimentar das pessoas e a continuidade da vida humana na Terra, flerta com as mais funestas formas de desenvolvimento em curso, atualmente. Por que não falou sobre Meio Ambiente de maneira direta? Para manter a porta do diálogo aberta com diversos setores (do poder econômico) para quando estiver em campanha ou, hipoteticamente, for reeleito? O fato é que o estímulo à importância do agronegócio levanta estas hipóteses – um agronegócio que não é sustentável, que envenena e estraga o solo, que destrói culturas (ao ocupar seus territórios), que não gera riquezas e não contribui com a melhoria da qualidade de vida das pessoas, das diversas formas de vida e da Natureza.

Antropocentrismo: Ficou nítida o quanto a importância da humanidade foi repetida no discurso de Lula, ainda que esta humanidade se extinga com as alterações ambientais em curso devido às formas de desenvolvimento que são impostas pelos grupos hegemônicos e bélicos que se colocam como donos de tudo. Ou seja, enquanto o patriarcado e o antropocentrismo se colocarem como os geradores da organização social, o próprio antropocentrismo não se sustentará, dada sua fragilidade teórica e pragmática diante da complexidade do grande organismo que é nosso Planeta.

Colonizante: O desprezo pelas mazelas da colonização foi notado quando se disse que o Brasil foi “descoberto” em 1.500, portanto, já era para estar bem melhor do que está. Estes tipos de análise colonizadoras e colonizantes desprezam a diversidade de culturas, minoram a importância dos grupos que já tiveram coragem de mudar suas práticas (como as comunidades veganas e/ou que desenvolvem a permacultura), ou aquelas que não se dobraram às funestas consequências da “vida moderna”, mantendo formas de viver harmônicas e coerentes com a continuidade da vida na Terra, lutando por seus territórios. Estas culturas, mesmo sofrendo com os ataques dos ávidos pelo lucro (legitimados pelo Estado), não recebem contrapartida ou compensação relativa à vulnerabilização com que foram expostas – refiro-me aqui a grupos quilombolas, indígenas, ribeirinhos, agroecológicos, dentre outros. Com a glamourização da “vida moderna” ficou parecendo que a tecnologia e industrialização teriam o poder de salvar o Brasil, juntamente com o lucro decorrente dos combustíveis fósseis. Ora, se no voto do Gilmar Mendes, no dia 09 de março, o argumento foi de que “não se combate crime cometendo outro crime”, igualmente, digo aqui que a saúde e educação não podem ser salvas cometendo crimes (ainda que não previstos em lei) contra a Natureza. A régua de desenvolvimento social não pode ser o quanto de carne de outros seres vivos uma pessoa consome ou o quanto de veículos foram comprados (como disse o ex-presidente, o que reforça, também, o fracasso da soberania alimentar e o fracasso dos transportes públicos coletivos de qualidade e, quiçá, sustentáveis).

Diversidade: Palavra quase proibida, quase usada (ocultamente) quando o ex-presidente tentou falar as siglas que se referem às diversas orientações sexuais e quando referiu-se à religiosidade. A diversidade cultural, de formas de vida, de organização social, da ética e economia dos cuidados, das diversas crenças (abafadas, durante o discurso, pelas palavras de que é Jesus que pode salvar) não fazem parte das pautas comumente abordadas em pronunciamentos de elegíveis.

Seria Lula o problema? Gostaria que fosse, mas não é. Direita e esquerda, com exceções, não estão empenhadas em romper, verdadeiramente, com os mecanismos de opressão. Se assim fosse, ao menos no discurso, algumas das pautas que levantei aqui seriam notadas.


Imagem de destaque: Amazônia Real / Flickr

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