O Esquecimento do Bicentenário

Editorial do número 327 do Jornal Pensar a Educação em Pauta

Recentemente, o Governo entrou em apuros quando o chanceler brasileiro, em visita à Portugal, soube dos preparativos daquele país para comemorar o Bicentenário da Independência e tomou consciência de que o Brasil nada tem feito em relação à efeméride. Do mesmo modo, em Roda de Conversa realizada pelo Portal do Bicentenário, o professor Renato Janine Ribeiro, Presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, lamentou a falta de atenção que o Brasil e, particularmente o Governo Federal, tem dado ao tema e às possibilidades que as comemorações trariam para discutir temas fundamentais para o país.

O esquecimento das comemorações do Bicentenário da Independência contrasta bastante com a atenção que os demais países da América Latina deram ao tema. Nas últimas décadas, do México à Argentina,  foram intensas as  mobilizações dos governos para a organização de grandes eventos nacionais em comemoração à passagem dos 200 anos de libertação do jugo espanhol.

Do mesmo modo, o esquecimento que agora se nota nas comemorações do Bicentenário, contrasta com as comemorações que tivemos no Brasil na passagem dos 50 anos da independência (1872), do Centenário (1922) e do Sesquicentenário (1972). Na primeira data foi realizado e publicados os dados do 1º Censo Nacional numa tentativa de se saber o que era o Brasil 50 anos depois da independência, por exemplo.

As comemorações do Centenário e da passagem dos 150 anos da independência foram organizadas com antecedência e grande atenção pelo governo da República, com ampla participação dos estados e até mesmo dos municípios. Comissões Nacionais e Estaduais foram organizadas e a programação foi grandiosa, com a realização de atividades de todas as ordens (cívicas, esportivas, culturais, inauguração de monumentos, realizações de exposições etc).

As comemorações do Sesquicentenário da Independência, em 1972, por exemplo, foram amplamente utilizadas pelo governo ditatorial para se autopromover e se legitimar diante da população, ao mesmo tempo em que buscava consagrar uma visão militarista, autoritária e elitista do processo de independência nacional.

É importante notar que o esquecimento do Bicentenário não é exclusividade do governo da República. A sociedade civil, com honrosas exceções, também  não deu atenção ao tema até o momento. No caso dos movimentos democráticos há, sobretudo, a justificativa de que estão mobilizando prolongadamente suas forças para combater as políticas de morte e os arroubos autoritários do governo. É como se, diante de um presente tão atroz e ameaçador da vida e das conquistas democráticas, não houvesse nem energia e nem sentido para se discutir a Independência.

Certamente o menor dos problemas do governo bolsonarista é o fato de ter esquecido o Bicentenário. As suas agressões à população, ao Estado de Direito Democrático e à própria soberania nacional têm sido tão amplas e intensas que esquecer as comemorações dos 200 anos de independência até parece um ato consciente. Desse ponto de vista, ao invés de lamentar, talvez devêssemos comemorar que, ao contrário de 1972, o governo brasileiro não aproveitou a efeméride por todo território nacional com mensagens  autoritárias e militaristas sobre a efeméride.

No entanto, para parte da sociedade civil, organizada e democrática, a ausência de comemorações organizadas pelo governo é uma oportunidade para que outras formas de rememorar o Bicentenário da Independência tomem corpo e lugar no espaço público. Nunca é demais lembrar que o transcurso dos 200 anos de independência se dará no interior da campanha eleitoral de 2022, o que significa uma grande oportunidade para se discutir não apenas o nosso passado, mas, acima de tudo, os destinos que queremos para nosso país.

As rememorações do Bicentenário podem ser um momento importante para a elaboração de nosso luto societário de maneira coletiva e construtiva, de forma que possamos, em meio às trevas em que nos encontramos, vislumbrar  saídas democráticas e um país em que a violência, o racismo, a LGBTfobia, as desigualdades e todas as nossas mazelas sejam coisas do passado.

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O Esquecimento do Bicentenário

Recentemente, o Governo entrou em apuros quando o chanceler brasileiro, em visita à Portugal, soube dos preparativos daquele país para comemorar o Bicentenário da Independência e tomou consciência de que o Brasil nada tem feito em relação à efeméride. Do mesmo modo, em Roda de Conversa realizada pelo Portal do Bicentenário, o professor Renato Janine Ribeiro, Presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, lamentou a falta de atenção que o Brasil e, particularmente o Governo Federal, tem dado ao tema e às possibilidades que as comemorações trariam para discutir temas fundamentais para o país.

O esquecimento das comemorações do Bicentenário da Independência contrasta bastante com a atenção que os demais países da América Latina deram ao tema. Nas últimas décadas, do México à Argentina,  foram intensas as  mobilizações dos governos para a organização de grandes eventos nacionais em comemoração à passagem dos 200 anos de libertação do jugo espanhol.

Do mesmo modo, o esquecimento que agora se nota nas comemorações do Bicentenário, contrasta com as comemorações que tivemos no Brasil na passagem dos 50 anos da independência (1872), do Centenário (1922) e do Sesquicentenário (1972). Na primeira data foi realizado e publicados os dados do 1º Censo Nacional numa tentativa de se saber o que era o Brasil 50 anos depois da independência, por exemplo.

As comemorações do Centenário e da passagem dos 150 anos da independência foram organizadas com antecedência e grande atenção pelo governo da República, com ampla participação dos estados e até mesmo dos municípios. Comissões Nacionais e Estaduais foram organizadas e a programação foi grandiosa, com a realização de atividades de todas as ordens (cívicas, esportivas, culturais, inauguração de monumentos, realizações de exposições etc). 

As comemorações do Sesquicentenário da Independência, em 1972, por exemplo, foram amplamente utilizadas pelo governo ditatorial para se autopromover e se legitimar diante da população, ao mesmo tempo em que buscava consagrar uma visão militarista, autoritária e elitista do processo de independência nacional.

É importante notar que o esquecimento do Bicentenário não é exclusividade do governo da República. A sociedade civil, com honrosas exceções, também  não deu atenção ao tema até o momento. No caso dos movimentos democráticos há, sobretudo, a justificativa de que estão mobilizando prolongadamente suas forças para combater as políticas de morte e os arroubos autoritários do governo. É como se, diante de um presente tão atroz e ameaçador da vida e das conquistas democráticas, não houvesse nem energia e nem sentido para se discutir a Independência.

Certamente o menor dos problemas do governo bolsonarista é o fato de ter esquecido o Bicentenário. As suas agressões à população, ao Estado de Direito Democrático e à própria soberania nacional têm sido tão amplas e intensas que esquecer as comemorações dos 200 anos de independência até parece um ato consciente. Desse ponto de vista, ao invés de lamentar, talvez devêssemos comemorar que, ao contrário de 1972, o governo brasileiro não aproveitou a efeméride por todo território nacional com mensagens  autoritárias e militaristas sobre a efeméride.

No entanto, para parte da sociedade civil, organizada e democrática, a ausência de comemorações organizadas pelo governo é uma oportunidade para que outras formas de rememorar o Bicentenário da Independência tomem corpo e lugar no espaço público. Nunca é demais lembrar que o transcurso dos 200 anos de independência se dará no interior da campanha eleitoral de 2022, o que significa uma grande oportunidade para se discutir não apenas o nosso passado, mas, acima de tudo, os destinos que queremos para nosso país. 

As rememorações do Bicentenário podem ser um momento importante para a elaboração de nosso luto societário de maneira coletiva e construtiva, de forma que possamos, em meio às trevas em que nos encontramos, vislumbrar  saídas democráticas e um país em que a violência, o racismo, a LGBTfobia, as desigualdades e todas as nossas mazelas sejam coisas do passado.

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