Não há ciência desprovida de crença

Wojciech Andrzej Kulesza

A divulgação científica, como meio de disseminar o conhecimento fora do restrito círculo dos pesquisadores, transmutou-se no Brasil do século XXI em popularização da ciência. Esse movimento, liderado pelos melhores cientistas, trouxe a questão para o interior mesmo das instâncias responsáveis pelo fomento e financiamento da ciência, como mais uma área de pesquisa científica. Consequência ineludível da crescente importância econômica e social da ciência e da tecnologia no mundo moderno, essa inserção institucional da popularização da ciência é justificada por dois motivos principais, nem sempre dissociados. De um lado, a dependência da pesquisa científica do financiamento público faz com que seja preciso justificar sua realização explicitando os possíveis resultados dos projetos científicos para a sociedade. Por outro, trata-se de subsidiar os cidadãos com conhecimentos que permitam que eles intervenham conscientemente nos debates públicos envolvendo as questões científicas.

Os assuntos relativos às ciências biológicas, especialmente aqueles envolvendo a saúde humana, são os que afetam mais diretamente o cotidiano das pessoas. Não por acaso, o ensino de ciências nos primeiros anos de escolarização é dominado por temas biológicos. A atual pandemia que assola o planeta exacerbou essa tendência, colocando as ciências médicas na linha de frente da divulgação científica. Todos querem entender urgentemente a COVID-19, fazendo com que a pesquisa científica nessa área ocorra pari passu com a divulgação de seus resultados. Mais do que seus conhecimentos, são as crenças dos cientistas que importam nesse momento. Estamos num daqueles momentos da história da ciência nos quais o surgimento ou a descoberta de um novo fenômeno desperta o interesse tanto dos cientistas como do público em geral. Quase que diariamente, vemos infectologistas e epidemiologistas na mídia trazendo informações sobre a doença tendo como base pesquisas de ponta recém realizadas ou mesmo em andamento.

Como se sabe, nestes momentos excepcionais da atividade científica surgem as mais desencontradas hipóteses acerca do fenômeno até que, após meticulosa testagem, surja uma explicação consensual, que será cientificamente comprovada e fará parte dos manuais, dos livros didáticos, enquanto todas as outras serão desprezadas pela comunidade científica, despertando o interesse, quando muito, apenas dos historiadores da ciência. Entretanto, a falta de um corpo de conhecimentos consolidados sobre um determinado fenômeno representa um grande desafio e responsabilidade para a popularização da ciência. Além de apresentar a hipótese mais provável do momento, aquela que mobiliza a maior parte das investigações, o divulgador da ciência terá que discutir, uma a uma, as hipóteses alternativas que têm sido apresentadas e as razões para sua rejeição naquelas circunstâncias.

Uma das grandes dificuldades da área é traduzir para uma linguagem popular os conhecimentos científicos. Simplificações, paralelos, analogias, metáforas, extrapolações, entre outras figuras de linguagem e de retórica, são frequentemente acionadas nesse processo de tradução, nem sempre deixando claras as limitações dessas formas de raciocínio. Assim, por exemplo, o uso de um argumento válido apenas em casos especiais, ainda que frequentes, para justificar uma hipótese pode dar ensejo a uma contestação que atinge não só o argumento, mas a hipótese em sua totalidade. Da impropriedade do argumento utilizado deduz-se erroneamente a falsidade da hipótese. Esta situação constitui um prato cheio para os produtores das fake news que, por meio da crítica a pontos obscuros presentes nas explicações dirigidas à popularização da ciência, tentam falsificar as verdades científicas.

De certa forma, face a um novo fenômeno, o comportamento da comunidade científica nos primeiros momentos é caracterizado pela proliferação de experimentos e conjecturas, impulsionados pela motivação subjetiva da promoção na carreira ou pelo interesse objetivo de auferir vantagens com a utilização das investigações bem-sucedidas. Todavia, como ocorre na atual pandemia, quando a produção científica está sincronizada com sua divulgação, a população em geral fica exposta a um debate normalmente restrito aos experts. Ao ver cientistas discordando entre si, se deteriora o nível de confiança que as pessoas conferiam aos seus peritos, escancarando as portas para a insinuação da dúvida e do descrédito na ciência, instaurando assim na sociedade incerteza e temor. Ao mesmo tempo, esse negacionismo provoca a diminuição da confiança na ciência, estimulando o aparecimento de interpretações alternativas não comprovadas e suscitando o advento de charlatães com suas soluções milagrosas.

A presença constante na mídia de questões científicas relativas ao novo coronavírus, por si só, justifica sua introdução no currículo escolar contemplando inclusive uma variedade de disciplinas, da estatística à genética. Porém, mais do que as matérias ou os conteúdos, as interrogações postas pela pandemia, ao nos colocar em evidência o processo dinâmico de produção da ciência, nos oferece a grande oportunidade de discutir em sala de aula o próprio método científico e sua relação com a marcha da ciência. Nos é dado a ver e a acompanhar um experimento realizado, coletiva e globalmente, com o objetivo de equacionar um problema premente que ameaça toda a humanidade. Confinados, imunes, assintomáticos, contaminados, de uma ou outra forma, todos nós, passiva ou ativamente, fazemos parte desse experimento, mesmo aqueles que o acham desnecessário, por acharem que se trata apenas de um pequeno problema e o mal desaparecerá naturalmente.


Imagem de destaque: Jesse Orrico / Unsplash

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