Monumentos, memória e a educação para uma sensibilidade iluminista

Alexandre Fernandez Vaz

Os últimos dias viram emergir uma série de manifestações críticas ao contínuo genocídio a que populações afro-americanas e afro-europeias vêm sendo submetidas há séculos, primeiro na forma de escravidão pura e simples – o que inclui a captura e o tráfico de africanos ao longo de igualmente muito tempo –, logo na violenta exploração capitalista composta, entre outros, pelo racismo estrutural. A história do Brasil não admite uma leitura que desconsidere esse processo.

Nesse impulso crítico, atualiza-se a disputa pela memória e pela narrativa histórica, desta vez, entre outros casos, a propósito do ataque à estátua em homenagem ao bandeirante Borba Gato, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Que o lugar tenha um nome ameríndio a batizá-lo é apenas mais uma das ironias nacionais. Como costuma acontecer com uma história feita de carne queimada e sangue lavando a terra, a narrativa que prevalece é a dos vencedores, a que transforma genocidas em heróis. Como acontece ao se elogiar um torturador como Carlos Alberto Brilhante Ustra, cuja atuação se deu durante os anos de repressão massiva em um órgão governamental terrorista chamado, observe-se, Operação Bandeirante (OBAN). Ou ainda quando se pretende corrigir os livros de história – escritos por professores comunistas – para mostrar a verdade segundo a qual não houve golpe em 1964, mas, sim, revolução, ainda que se possa tolerar que ela seja chamada de movimento. Temos escutado também que a escravidão foi ruim para os escravizados (!), mas que para seus descendentes acabou trazendo a vantagem de estarem na América e não na África nos dias de hoje. Afora o absurdo da declaração, haveria ainda que se supor que a mesma pessoa que nasceu aqui teria nascido do outro lado do Atlântico, caso seus ancestrais não houvessem sido trazidos à força para cá. Não há lógica que resista a um raciocínio desses.

Voltemos ao Borba Gato. Já passou da hora de os paulistas reverem criticamente o passado que para si projetam e de se colocarem de forma mais incisiva contra o culto ao bandeirantismo, sentimento que envergonha a nação e avilta a memória dos milhares de ameríndios e afrodescendentes assassinados por essa versão de banditismo de Estado. Escrevo isso tendo na memória o querido avô paterno, ele que era veterano da “Revolução” Constitucionalista de 1932, que se orgulhava de ser paulista. Não se pode admitir que a sede do governo do estado de São Paulo se chame Palácio dos Bandeirantes, tampouco esquecer o terror estampado no nome da emissora de televisão e rádio, ou ainda andar pela capital e cruzar praças e ruas batizadas com nomes de bandeirantes.

A permanência desse estado de coisas é marca do autoritarismo e da violência perenes em nossa história, atualizados pelos diários ataques à democracia que temos testemunhado. Um dos últimos (e estamos longe de chegar ao derradeiro) foi a tentativa do então Ministro de Estado da Educação, Abraham Weintraub, de ferir a autonomia universitária ao pretender a nomeação arbitrária do cargo de reitor para instituições federais que ficassem com o cargo vago durante a pandemia. Outra face desse processo é a indiferença (e mesmo o apoio) em relação à brutalidade, tortura, assassinato e mesmo genocídio, práticas policial-militares e milicianas correntes, com frequência justificadas como infelizmente necessárias para evitar um mal maior. Trata-se de um encadeamento de ideias que, aliás, esteve presente nas eleições presidenciais de 2018, quando, na firme disposição de evitar que uma candidatura de esquerda chegasse ao Planalto, um bom número de democratas (?) preferiu dar seu voto a um candidato que nega que houve tortura no Brasil, embora tenha em um torturador o seu ídolo, rechaça a ciência, desdenha da educação, do meio-ambiente, das populações indígenas. Atacar a estátua de Borba Gato é sinal de inconformismo com toda essa violência do presente, cujas raízes o bandeirante e as forças que representava ajudaram a fixar. É um ato simbólico porque, ao contrário da carne humana, o concreto não sente dor.

Os monumentos não precisam ser eternos – de fato não são – e é fundamental que as cidades se reconciliem consigo mesmas ao comportarem estruturas simbólicas e materiais que não firam a dignidade humana, mas, ao contrário, a promovam. Alguns deles, no entanto, devem ser preservados como expressão do horror de um tempo que não se esgota no passado a que ele remete. A catástrofe segue e as estátuas e obeliscos a documentam. Não pode ser esquecida. É preciso aprender a ter vergonha cada vez que se passe pela imagem do bandeirante, assim como pela frente do Colégio Getúlio Vargas, em Florianópolis, entre tantas outras homenagens vis com as quais convivemos sem incômodo. Há uma sensibilidade que precisa ser educada no sentido do direito universal à vida, igualdade, autodeterminação. Tal educação demanda o trabalho do conceito e a consciência da experiência histórica. Seria muito bom que um dia pudéssemos dizer que já fomos muito bárbaros, mas agora somos um pouco melhores, que já sabemos o que cada nome de rua ou praça, estátua ou escultura, significa. Ainda vale a pena confiar nas chances de que isso seja possível.


Imagem de destaque: Estátua Borba Gato – São Paulo In Foco, ALESP

 

 

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