Infantilização dos estudantes

Alexandre Fernandez Vaz

No último domingo, 22.03, reportagem do jornal Folha de São Paulo mostrou uma situação que, de tão espantosa, deve ser sem precedentes na história do ensino superior no Brasil. Segundo relata Thais Bilenky, instituições paulistas vêm vivenciando reuniões com pais e mães de seus estudantes, entre outras práticas geralmente associadas ao cotidiano da educação básica. Algumas delas seriam o controle online do desempenho dos alunos, exercido por seus responsáveis, e reclamações dos genitores de que os filhos foram reprovados em uma disciplina, algo acontecido até mesmo em um curso de pós-graduação. Segundo um dirigente, alguns estudantes teriam “autonomia limitada e repertório incipiente.”

O relato é desconcertante não apenas pelo ineditismo, mas por certas crenças que temos sobre a vida universitária. Um breve exame da realidade mostra, no entanto, que o exemplo extremo (se é que as situações descritas são mesmo o ponto em que o absurdo já não pode ser ultrapassado) apenas realça um quadro que, matizado, está bastante presente. Não são infrequentes os processos de infantilização de alunos nos cursos superiores.

Se adotarmos, não mais que para fins explicativos, a distinção entre política e violência proposta por Hannah Arendt, poderemos admitir que a primeira é prática do mundo adulto, aquele que é partilhado em igualdade a favor da liberdade e da justiça. É por isso que, seguindo Arendt, na vida universitária quase que não haveria educação propriamente dita, mas apenas ensino, visto que entre adultos a suposição de igualdade é fundamental para o reconhecimento da autonomia de cada um dos atores envolvidos na trama social e, principalmente, política. Não reconhecer, de antemão, tal integridade, é apostar desigualdade e não na pluralidade e na diferença.

A infantilização é, portanto, poderosa arma de dominação porque tira do outro a posição de interlocutor para outorgar-lhe a de menoridade. Disfarçada de proteção e compreensão da fragilidade alheia, ela apazigua o significante, tranquilizando-o da angústia que é manter sua posição superior. É notável que infantilizemos tanto os estudantes.

Recorro a alguns exemplos que aparentemente nem de perto chegam aos relatados na reportagem da Folha, mas que talvez apontem para o mesmo caminho. Um professor que amiúde procure exemplos contemporâneos para oferecer materialidade às questões que aborda, não poderá facilmente contar com o repertório de seus alunos.  É comum que ouça deles exemplos oriundos não da literatura, do teatro, mesmo do cinema ou da música popular. Novelas, noticiários da televisão ou informações surgidas sabe-se lá de onde “na internet” são mais lembradas. Reduzir seus consumidores a in-fantes é um imperativo dos esquemas da indústria cultural, sem o que eles não funcionam. Supor estar divertindo-se mas permanecer no universo do sempre igual é uma das marcas fundamentais dos processos de dominação que se dão por meio do consumo de entretenimento. Diz-se que o indivíduo seria “autônomo” para escolher entre um programa ou outro, ou mesmo para desligar o computador ou a televisão, mas só é possível afirmar isso se houver desconhecimento das forças sociais que conformam a individualidade e dos apuros pelos quais passa o sujeito em seus embaralhados desejos. Nossos estudantes, como de resto todos nós, estamos nesse emaranhado.

Os cursos de formação de professores talvez enfrentem uma dificuldade extra se comparados a outras carreiras universitárias. É muito comum que neles se exercite a simulação de situações de ensino, muitas vezes procurando reproduzir tal e qual o que acontece no ambiente escolar. Parece ser difícil que estudantes, ao tentarem se colocar na posição de escolares, não incorporem o que imaginam ser o comportamento infantil ou juvenil. Para tanto, evocam menos a memória e muito mais os estereótipos sobre a infância e a juventude que são constantemente repisados pelos produtos que consomem, mas também pela própria Universidade.

O problema é gravíssimo, a considerar minha experiência na UFSC, no curso de Pedagogia. É triste ver alunos e alunas desperdiçarem inteligência e tempo em falas que mimetizam o tom incerto das vozes infantis e de desenhos animados. Não seria o caso de separar mais claramente o saudável impulso de valorizar a infância como experiência social daquela compulsão de infantilizar os outros e a si mesmos?

Espero que na Universidade pública não cheguemos ao ponto de propor uma reunião de pais. Pelo andar da carruagem, no entanto, já não seria de se espantar. Como antídoto, poderíamos levar estudantes e nós mesmos um pouco mais a sério, tratando-os e tratando-nos como adultos, não apenas aptos a reproduzir uma opinião sobre algo (ou sobre “tudo”), mas formados para enfrentar o conhecimento e as problemáticas sociais com disciplina, esforço analítico e capacidade reflexiva. Não é tão complicado, basta que a Universidade aposte naquilo que é seu papel, que não é o de vender entretenimento, nem de agradar a clientes. Para isso é preciso renunciar à sedução gozosa da infantilização. Mas é que talvez isso não seja tão fácil.

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